Recado Social

CUSTOU-NOS VOLTAR A SORRIR E A ABRAÇAR …

Carlos Miranda
carlosimparcial@gmail.com.

Maio de 1991, Luena, a cidade, Moxico a província; os nervos das tropas estão indisfarçavelmente à vista. Tentam a todo o custo sorrir uns para os outros, mas sente-se que qualquer manifestação de repulsa engatilhada sempre na desconfiança, quer de um lado como do outro, pode deitar por terra os sonhos de milhões de angolanos fartos de tanta falta de entendimento entre os seus filhos; que se odeiam, que são permanentemente manipulados por joguetes de uma guerra fria que não lhes diz respeito, mas que entretanto dividiu o país, roubou a vida de milhares de mães, pais, filhos e amigos.

Sente-se que ao primeiro sinal de recuo no “processo de paz” haveria sangue, morte e poucas estórias para  contar, pois estavam prestes a ser assinados os acordos de Bicesse, provavelmente o mais justo; talvez o menos hipócrita, ou mesmo o mais sério.

Entre a esperança de que “aquilo” de Bicesse haveria de pegar mesmo, reinava a incerteza de um amanhã reconciliador, a despedida definitiva das trincheiras, o abraçar das suas famílias obrigadas a ficar nas cidades, aldeias e vilas para simplesmente… sobreviverem e rezar. Estamos no aeroporto de Luena, acabadinhos de chegar de Luanda, carregando apenas uma caneta, um gravador, uma máquina fotográfica e rolos mil ao cuidado do “guerreiro” Paulino Damião, o “Cinquenta”.

Foi em Maio de 1991.De repente, surgem militares das Forças Armadas de Libertação de Angola (FALA) e das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA).Lado a lado, oficiais dos exércitos “libertadores” apreciam os subordinados aparentemente despreocupados com “aquilo” que estava para acontecer na longínqua Lisboa, em Bicesse.

Faltam dez, quinze dias. Os militares falam de si, das suas aventuras desdobradas em variadíssimas trincheiras; quase ninguém alude o facto de terem combatido para matar, mutilar, fugindo ao longo de muitos anos do caminho da paz. Cada um exibe uma postura reconciliadora, de paz e vontade de construir algo ali mesmo, no aeroporto do Luena.

Então, alguém sugere um jogo de cartas. Os repórteres transformam-se em árbitros da “suecada”. – “Nada de batota, quem perder salta da mesa, que nós vamos jogar contra quem vencer”- ditámos, como se mandássemos coisa alguma. Já não me recordo quem terá vencido a partida.Apenas sei que, finalmente, estavam quatro irmãos à jogar às cartas numa altura em que ainda se sentia no ar o cheiro acre de um conflito armado, entretanto em trégua trémula e perigosa,ali mesmo a escassos quilómetros de uma Luena fortemente desconfiada.

O Dia “D” chegou: para trás, ficava na memória a despedida daquele grupo de soldados que provavelmente encontrar-se-iam mais cedo do que tarde num campo de batalha qualquer. Trinta e um de Maio de 1991. A sala de protocolo do governo acolhe a equipa e uma meia dúzia de soldados e oficiais atentos ao desenrolar dos acontecimentos em Bicesse. Medo,desconfiança e algum desespero se vislumbra nas faces de cada um de nós. “Será desta vez?Há notícias de Bicesse?Boas ou más?Quando e como regressaremos às nossas casas?E se a guerra rebentar de novo, qual será o nosso destino, se não vimos nenhum avião no aeroporto?”. Não há respostas para tantas perguntas chatas.Minto, houve uma: “camaradas jornalistas, a guerra ainda não acabou!”. De repente, começam os “bombardeamentos”, milhares de balas cruzam os céus do Luena. A poucos metros, ouve-se um estampido, outro e mais outro. São canhões de forte calibre. Vinte, trinta minutos de terror. O “Cinquenta” esconde-se por baixo de uma mesa de centro, facto impossível em condições normais; apetece-me ir à casa de banho entretanto ocupada por outros mais medrosos  do que eu porque correram primeiro e ocuparam o espaço que circunstancialmente era o mais adequado. “Ei, camaradas! Não se preocupem…Assinaram os acordos em Bicesse! Estamos em paz!!!.O que estamos a ouvir é a festa daquele lado e deste!”. Foi a 31 de Maio de 1991. Um ano depois, os nossos sorrisos voltariam a ser traídos, a nossa esperança adiada vezes sem conta e apenas uma década mais tarde voltaríamos a festejar, a sorrir e abraçarmo-nos.

P.S: Da minha caixa de recordações, desta feita em memória do saudoso colega e amigo, o brilhante fotógrafo Paulino Damião, o nosso inesquecível ‘’50’’.

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