Conjuntura

Siona Casimiro: “O FCFA É UM TALÃO VITAL PARA O HISTÓRICO COLONIALISMO FRANCÊS”

Escrito por figurasnegocios

Para a memória colectiva, estampamos nestas páginas uma entrevista ao decano do jornalismo angolano, Siona Casimiro*, falecido recentemente. Conhecedor da realidade africana, Siona clarifica, com sapiência e profundidade analítica, a forte influência da França em diversas regiões do continente, onde continua a controlar vários países e regimes, impondo a sua poderosa força política, económica e financeira.

Para o nosso interlocutor, a presença do Franco CFA (sua criação) é uma prova clara e evidente do seu poder. “O FCFA é um talão vital do histórico colonialismo francês na África Subsaariana. A onda independentista conquistou o seu objectivo político, com um consenso explícito à sua sobrevivência”, afirma, lembrando igualmente a questão da sucessão de golpes de estado registados fundamentalmente em alguns países da região, em que a imiscuição nos assuntos internos do antigo colonizador é cada vez mais evidente…

Entrevista conduzida Por: Victor Aleixo

Figuras & Negócios (F & N) – Lembrei-me do Campeonato Mundial de Futebol, que  se joga no Qatar e na equipa da França estão jovens provenientes, na sua maioria, de antigas colónias francesas. Quanta sinergia entre o antigo colono e os antigos colonizados …

Siona Casimiro (S.C.) – Imensa, no entendimento positivo do conceito de sinergia. Ou, seja, a cooperação para o bem-estar comum. No mesmo sentido, considero como “o antigo colono”, a parte outrora dominadora da outra alforriada “de jure”.

O pesado legado da história colonial e da descolonização repercute-se assaz na actualidade dos laços económicos; uma actualidade que enferma, também, um gritante paradoxo. E, nesta contradição, se evidencia o choque entre a inércia do passado e os sonhos de emancipação completa.

O pragmatismo de cada lado tem vindo a predominar na redução do enxofre. Daí, o surgimento de uma instituição como a Francofonia, culturalmente emblemática na circunstância. Com enfoque na partilha da língua e cultura francesas, ela tem suavizado a realidade da chamada ‘France-Afrique’. Quer dizer, o neologismo que dissimula comodamente os alicerces económicos, bastante neocoloniais, ainda é “de facto”. Recapitulando a caracterização da tal sinergia activa entre a antiga metrópole francesa e os Estados largados, eu digo: esta sinergia é  imensa, paradoxal e pragmática.

 F&N – E com os árabes, por exemplo, o Marrocos, a Tunísia e a Argélia?

S.C. – Em suma, o Magreb, incluindo a Líbia, a Mauritânia e o Sara Ocidental. As relações de Paris com este bloco de Estados, acarretam singularidades do espaço e do tempo. As marcantes são: a vizinhança geográfica; a duração da colonização (apenas 44 anos de protectorado francês sobre Marrocos, por exemplo); as fortes reminiscências da extensão do império árabe na Europa mediterrânea; a viva identidade do Islão (manifestou-se nitidamente na Argélia, em 1991, quando a Frente Islamista de Salvação, FIS, se revelava virtual vencedor do sufrágio democrático. Os caciques da antiga FNL heróica frustraram a consumação da tal vitória, em cumplicidade geoestratégica com a França); o refúgio da resistência da França Livre em Argel, durante a 2ª guerra mundial; a aposta da colonização de fixação, com a sua embrionária economia de amparo (que desembocou no fenómeno sociológico dos “pieds noirs’, no desespero dos antigos colonos); etc.

F&N- Porquê que a França dá o dinheiro cunhado de Franco CFA aos antigos colonizados   e  negros e não aos brancos antigos colonizados, como os tunisinos  e argelinos?

S.C. – O contorno rácico não me parece ter sido preponderante no plano mencionado, tendo em conta as especificidades que realcei. O geográfico (como a vizinhança entre os países  do Mediterrâneo e a barreira do deserto do Sara) foi mais determinante. E histórico, em que se ergueu a antecipação árabe. O precedente rácico árabe, mais incidente na África Oriental (do Cairo a Maputo), determinou, a meu ver, outra via. As tentaculares companhias do agressivo capital colonial francês jogaram com maior disfarce.

O franco CFA correspondeu ao interesse das mesmas na exploração comum  do espaço em análise. Garantiu a estabilidade e livre transferência da renda dos investimentos – uma faceta sistémica, ora cada vez mais questionada.

F&N – Porquê que a França é dona do FCFA dos antigos colonizados, uma vez  que está na zona Euro e os países africanos reclamam-se independentes e soberanos? Mas, afinal, pode-se concluir que continuam a ser, de facto,  dependentes da antiga potência quanto as finanças e a moeda?

S.C. – O FCFA é um talão vital do histórico colonialismo francês na África Subsaariana. A onda independentista conquistou o seu objectivo político, com um consenso explícito à sua sobrevivência. O Euro traduz o interesse da França intrínseca no seu continente e enquadramento no mundo pós – 2ª guerra mundial. Claro, o FCFA sofre agora das novas realidades em irrupção quase que vulcânica na ecologia africana deste século 21.

Nestas realidades, se destaca o falhanço das elites autocráticas na gestão das independências. Mesmo a sua função e papel de guardiões seguros dos interesses demorados do legado colonial são fortemente sacudidos. Firmemente, os anseios das massas emergentes no limiar do corrente terceiro milénio requerem soluções progressistas. A onda dos golpes de Estado na região da CEDEAO (Comunidade dos Estados da África Ocidental) traduz frescamente esta tendência. De par, com a afirmação de forças sociais mais preparadas em amparar e canalizar as sãs energias contemporâneas.

Penso, neste particular, na Sociedade Civil, nas Igrejas, nas diásporas, nas articulações com a corrente da Alternativa Mundial. No panorama, acrescento os tigres novos como a superpotência chinesa, os Estados Unidos e a Rússia. Todo este conjunto engendra uma cidadania impetuosa, que esvazia os recursos arcaicos.

Mister é reconhecer, no entanto, que a correlação de forças não pende, ainda, pela radical inversão cristalina a breve trecho. Irrompeu à superfície no Magreb, porventura, com radiação óbvia na periférica zona do Sahel e da CEDEAO.

A dialéctica do progresso histórico parece, todavia, bastante irreversível. Bem como a metástase para todas as demais regiões africanas, de Niamei (capital do Níger) ao Cabo (África do Sul). Em especial, ao se manter o ‘statu quo’ nas privações impostas às populações demoradamente.

F&N – Qual é o papel da União Africana (U.A.) sobre a dependência financeira dos    estados?

S.C. – Marginal, em virtude da reduzida capacidade financeira da África, em comparação a zonas ricas no globo. A banca africana sustenta irrisoriamente a economia africana, de longe amparada pelo FMI e o Banco Mundial. Não parece sensível o impacto dos endinheirados nigerianos, egípcios e quenianos na nossa autonomização financeira. É animadora, com certeza, a contemplação da África do Sul nos BRICS (grupo formado pelo Brasil, China, Índia, e a Rússia). (Luanda, 16 de Dezembro de 2022).

 *Jornalista e Colaborador Permanente da Revista Figuras & Negócios.

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