Cultura

Beto Cassua: O TEATRO É A ÚNICA ARTE QUE DÁ ESPECTÁCULO TODOS OS DIAS

Escrito por figurasnegocios

Apesar da carência de salas adequadas para a exibição dos grupos, o teatro é a única arte que dá espectáculo todos os dias em Angola, afirma o encenador de um dos grupos de referência do teatro angolano, o Etu-Lene, Beto Cassua. “Basta irmos para as redes sociais. O teatro é a modalidade artística que faz Angola ter cultura. Porque não existe outra arte que se faz como fazemos, quase sem apoio”, disse.

Beto Cassua, que analisa o quadro actual das artes cénicas no país, considera o teatro como uma arte que convida pessoas a assistir as peças com o calor humano do palco, para a plateia sem pedir favores, em qualquer lugar. O actor, que começou a dar os primeiros passos nas artes cénicas em 1989, no grupo Oásis, pela mão de Africano Cangombé, lamenta o facto de o país não contar com uma sala para o teatro convencional.

“Estamos a improvisar”, lamentou, sublinhando ainda o facto de o grupo Horizonte Nzinga Mbandi ter conseguido adaptar o anfiteatro da escola Nzinga Mbandi numa sala com condições mínimas para se fazer teatro.


Beto Cassua

Figuras&Negócios (F&N)- Quando se fala do teatro em Angola, um nome salta à vista: o de Beto Cassua. O que o levou a enveredar pelo mundo das artes cénicas?

 Beto Cassua (BC) – Em princípio era basquetebolista. Comecei a praticar a modalidade no bairro Ngola Mbandi e depois fui jogar na Vila Clotilde, mas foi efémero, porque após passar no teste do treinador Nelinho, irmão do Zé Carlos Guimarães, fui convidado pelo professor Africano Cangombé para integrar o elenco do grupo Oásis.

A verdade é que o professor Africano Cangombé descobriu-me, em 1989,  nos becos do Rangel, num dia em estava num quintal para saber do aluguer de uma casa. Neste dia, entrei no quintal e fiz um truque espontâneo, levando-o a perguntar se era actor. Apesar de lhe ter dito que nunca tinha experimentado, reconheceu em mim algum talento e, portanto, surge ali o convite para ir ao Cine Teatro Nacional, local onde o grupo Oásis ensaiava. Gostei e nunca mais saí até hoje. Isso há mais de 30 anos.

F&N- Como encenador de um dos grupos de referência do teatro angolano, o Etu-Lene, que avaliação faz do estado actual das artes cénicas angolanas?

 BC – O teatro é a única arte que dá espectáculo todos os dias em Angola, basta irmos para as redes sociais. O teatro é a modalidade artística que faz Angola ter cultura. Porque não existe outra arte e  fazemos como fazemos, quase sem apoio. O teatro é  uma arte que convida pessoas a assistir as peças com o calor humano do palco, para a plateia sem pedir favores, em qualquer lugar. Basta fazer um truque e estou logo a fazer o teatro popular.  Em 1996, todo mundo só queria fazer um tipo de estilo, seguir os grupos mais experientes e seguir também os seus estilos, mas hoje há uma diversidade de temas. Quero com isto dizer que o teatro vai bem, só precisa de mais apoio.

F&N – A província de Luanda, centro de concentração da maioria dos grupos teatrais do país, perdeu, há muitos anos, a sua principal sala de espectáculos, em concreto o Teatro Avenida. Como é fazer teatro nas actuais condições?

 BC- É gostar, ter história e vivências. Primeiro têm que gostar, não se faz nada sem gostar, depois, se for fazer teatro, como no meu caso que sou criador de textos, é necessário ter vivências e quanto mais for de sofrência mais conteúdos tenho e mais êxitos tenho. Escrevo para que o pessoal que estiver na plateia se reveja no que escrevo, através da minha vivência.

F&N – Mas, apesar das dificuldades, principalmente ligadas à falta de infra-estruturas adequadas, os grupos continuam a fazer o melhor pelas artes cénicas. Isso é resultado do amor pela arte?

 BC- Infelizmente, no país, construíram-se vários e vários condomínios, mas não se pensa nos anfiteatros. Da mesma forma  que se coloca um ATM para os moradores dos condomínios tirarem dinheiro e um posto médico em condições, não seria mau se se construísse um anfiteatro, mas isso não se faz. Hoje, estamos a ir  em sítios que foram pura e simplesmente concebidos só para kizombas, sembas, muzongues  e funjadas. Uma chamada de atenção aos gestores dessas casas que quando vêm ao teatro querem cobrar preços como se nós fossemos num sítio  convencional para apresentar teatro. A título de exemplo, não posso aceitar que tenho que pagar, num centro recreativo, o mesmo que se paga na LAASP, porque a LAASP já nos dá uma outra condição, temos lá as luzes, equipamento sonoro, mais no centro recreativo temos que levar os nossos equipamentos e, às vezes,    até pagamos muito mais.

Os senhores que têm os centros recreativos não pensam cultura ou pensam que cultura é só música. O teatro é mais do que isso. A produção e realização de um espectáculo musical tem a vantagem de contar com grandes empresas a patrocinar e as publicidades, já no teatro não, às vezes, o líder tem que pegar do seu salário, diminuir na cesta básica familiar, para pagar os custos de produção.

Mas, vamos fazendo, estamos sempre a fazer, se ainda não foram a tempo de fazer anfiteatros nos condomínios, pelo menos que sensibilizem os homens dos centros recreativos para que facilitem também a vida dos que fazem teatro.

 F&N – A qualidade do que se faz nas actuais condições satisfaz os anseios de quem tem no teatro a sua principal forma de expressar sentimentos?

 BC– É como tudo. Não devemos avaliar desta forma, por exemplo, estou a assistir  um  determinado canal ou uma sintonia de rádio. Se não me convencer troco de canal, no teatro é a mesma coisa, quem vai ver uma peça teatral se acha que esse grupo não lhe convence então que escolha outro grupo, porque somos vários  e temos variedades de serviços para  oferecer ao consumidor, porque o público quer o espectáculo.

F&N –  A média de espectáculos que se produz é satisfatória?

 BC- Em Angola estamos no bom caminho, a muitos festivais. As províncias, quase todas, têm festivais e estão sempre no activo. Hoje entras nas redes sociais e encontras festivais em todos os quadrantes nacionais. É muito importante enquanto fazedores do teatro.

F&N – É justo dizer que só ao Estado cabe a missão de mudar o quadro das artes cénicas em Angola?

 BC– Não é o Estado, são as empresas, aquelas empresas que fazem dinheiro é que deveriam patrocinar como fazem com a música, mas o que não sabem é que se da mesma forma que apoiam a música apoiassem o teatro os ganhos seriam maiores. O Estado já fez a sua parte, agora queremos mesmo as empresas que lucram e apoiam também o teatro.

F&N – No seu entender, quais são as principais necessidades dos grupos?

 BC– As necessidades dos grupos estão ligadas a formação, porque devemos, primeiro, investir no homem, depois os espaços. Já agora, cabe a mim, se vocês permitirem, fazer um elogio aos meios de comunicação que têm dado um grande apoio na publicidade sem custo nenhum, por isso digo que o Estado está a fazer a sua parte.

F&N – Quando falamos em necessidades, estamos a falar também de salas. Para garantir a acção dos grupos, principalmente, em Luanda, quantas salas são necessárias?

 BC– Em Luanda não temos salas teatrais. O que existem são salas que não foram concebidas para o teatro. A única que tinha era o Teatro Avenida. Sala para o teatro convencional não, mas temos estado a improvisar. O Horizonte Nzinga Mbandi conseguiu fazer a adaptação de um anfiteatro da escola Nzinga Mbandi e a LAASP  recebe os grupos.

Nas demais províncias, a situação é mesmo penosa, mas os grupos sabem o que têm que fazer.

F&N –  E que condições devem ter as salas?

BC– Condição acústica primordial, depois os equipamentos de som e luz. Sala de teatro não é uma qualquer. Deve ter condições técnicas que as salas actuais não têm. É também necessário respeitar o trabalho dos grupos. Quando vamos a uma sala de teatro, exceptuando o Horizonte Nzinga Nbandi que tem tido o ABC do protocolo de como tratar um grupo que vem a sua casa, o resto é tudo desorganizado.

F&N – Que caminhos devem ser seguidos para reverter o actual quadro das artes cénicas em Angola?

BC– Através da Lei do Mecenato, o Estado, enquanto ente do bem, deve pressionar as empresas para olharem para o teatro, porque não é só da música que se vive, a cultura é vasta e precisa de apoio em todas as vertentes, porque o país não se desenvolve só com música. Teatro é um dos instrumentos mais úteis e mais expressivos para a edificação de um país. O povo que não cultiva o teatro ou está morto ou está moribundo e no povo angolano está vivíssimo.

Veja que, com todas essas dificuldades sociais, você vê o povo angolano sempre alegre, a caminhar e a lutar.

 F&N – Até que ponto o CEART e o instituto superior podem ajudar a mudar o quadro e com isto melhorar a performance individual e colectiva dos agentes do teatro?

BC- Em termos de formação, temos aí o ISARTE e o CEART, com professores vindos de Cuba, portanto, não temos muito a nos queixar, estamos bem, estão a se formar, e o trabalho que apresentam vê-se mesmo que andaram na escola, mas sabem que nem todos podem fazer a mesma coisa, porque não se come arroz doce três vezes nas refeições, nos estamos a fazer o teatro por experiência e por vivência, com o ABC do teatro, todos nós temos as bases.

F&N – Uma das principais funções do teatro é mobilizar as comunidades em torno dos principais problemas sociais. Em Angola esta função está a ser cumprida?

 BC- Sim, porque eu posso chegar junto de um mercado e fazer uma encenação de cinco minutos para sensibilizar as vendedeiras e os vendedores para não venderem na estrada sob pena de ser atropelado por um carro desgovernado.

F&N – Que medidas devem ser tomadas para inserir o teatro nas escolas?

 BC- Havia uma disciplina no currículo escolar denominada Canto, Teatro e Dança. É necessário reactivar essas disciplinas de facto, para estarem no currículo escolar. No Sambizanga tive a oportunidade de ser o chefe das actividades extra escolares, em 2000, tendo como uma das tarefas organizar actividades com foco no teatro. Basta se efectivar isso e vamos ter grandes artistas nas escolas, de canto, teatro e dança.

F&N –  Beto Cassua é  o impulsionador do projecto Teatro Comunitário pela Cidadania, cujo palco é o Marco Histórico 4 Fevereiro, no município do Cazenga, em Luanda. O que nos pode falar sobre este projecto?

 BC– Agora estou a criar diálogos, conteúdos para as televisões, porque noto que, aos poucos, estamos a ser colonizados pela Turquia, México, China, porque são os conteúdos deles que passam e entram em nossas casas diariamente? Já temos canais que diversificam, com várias produtoras independentes capazes de criar conteúdos e são angolanos. Através das redes sociais vão produzindo conteúdos com o propósito de um dia alguém chamar para escrever uma novela.

F&N – Diga-nos o ponto positivo e negativo de se fazer teatro em Angola?

 BC– O ponto positivo é saber que fazer teatro em Angola faz bem a alma, ajuda a desenvolver a leitura e a memória, porque no teatro trabalha-se com texto, o teatro obriga a estudarmos todos os dias. Escrevo com delicadeza, aprumo e bem os meus textos, porque, como tenho dito aos meus actores, não é só para ler, é também para estudar. Da forma como se escreve é da mesma forma como deves conversar com as pessoas quando estão fora do palco. Nas minhas peças têm que entrar vocábulos de língua nacional, obrigatoriamente, porque já somos sexagenários, estamos a bazar, temos que ensinar a falar as nossas línguas maternas. Pontos negativos do teatro em Angola são as dificuldades em vários aspectos.


PERFIL

Beto Cassua, nasceu no dia 8 de Novembro de 1962, tem no seu currículo passagem como responsável pela área da Cultura do município do Cazenga. Da sua trajectória mencionam-se distinções como o Prémio Nacional de Cultura e Artes em 2002. É também um dos impulsionadores do projecto “Teatro Comunitário pela Cidadania”, cujo palco tem sido o Marco Histórico 4 de Fevereiro, no município do Cazenga, em Luanda.

Sobre o autor

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