Paula Cristina Roque, académica, trabalha há muitos anos em Angola, e tem como amor muito especial o país, onde agora é directora da organização não-governamental “Chang”, que apoia vários projectos no sul de Angola, a fim de combater a fome e, ao mesmo tempo, desenvolver trabalhos sociais com as mais diversas comunidades locais em vários países africanos. Figuras & Negócios esteve em conversa com esta antropóloga que fez o mestrado em direitos humanos em Inglaterra e aqui também doutorou-se no departamento de desenvolvimento internacional. Com Paula Roque, tratamos de abordar de tudo um pouco, com especial destaque sobre assuntos relacionados com a realidade política actual, especialmente em relação ao período pós-eleitoral e suas consequências, numa entrevista muito intensa em que a nossa interlocutora, por um lado, defendeu a Unita e a sua liderança, disparando “forte feio” contra a governação do MPLA, por outro.
Por: Cláudio Fortuna / Fotos: Arquivo NET
Figuras & Negócios (F&N) – O nome de Paula Roque remete-nos o nome de Fátima Roque. Sabe-se que tem uma tese que estuda sobre a UNITA… A sua ligação à UNITA, parte exactamente por ser filha de Fátima Roque ou a busca investigativa encaminhou-a até aí?
Paula Cristina Roque (P.C.R.): Eu acho que é a ligação a Angola, à UNITA. E vem devido à minha mãe e o percurso dela dentro da UNITA. A minha mãe, desde muito cedo, ensinou-me a ter um afecto muito especial pela justiça social e por um povo que ainda não chegou à sua liberdade e prosperidade; uma nação que está por se criar. E, sem dúvidas, o que sou hoje devo muito à minha mãe que me ensinou muito e eu tenho uma admiração imensa pela história da UNITA, especialmente quando a UNITA, nos anos 80, ter o seu estado paralelo e que conseguiu criar do nada de uma derrota quase derrota em 76, para conseguir governar milhões de angolanos nos anos 80. Foi, aliás, dos movimentos de libertação mais bem sucedidos e mais resilientes, eu diria de África.
F&N – A derrota que está a referir é aquela de 8 de Fevereiro de 76, na altura em que a UNITA foi supostamente expulsa do Huambo?
PCR – Sim, sim exactamente foi quando a UNITA foi expulsa do Huambo.
F&N – Mas no seu histórico, consta que para além de ter feito o doutoramento em ciências políticas, vem da antropologia. A que se deve esta migração?
PCR – Sabe, eu fiz antropologia, porque, lembro-me outra vez da minha mãe que me falou há muitos anos de um ditado que vem do ex- presidente Leopold Sédar Senghor do Senegal que dizia que quando um mais velho em África morre, é como se uma biblioteca ardesse e isso tocou-me muito. Eu fui para antropologia exactamente para não deixar a história das pessoas morrer, para dar voz à história, aonde há um legado de tradição moral que tem dado um importantíssimo contributo. Mas depois, fui fazer o mestrado em direitos humanos em Inglaterra porque na antropologia tudo é uma questão de relatividade natural. Na antropologia social, eu fui estudar direitos humanos porque quis perceber mais sobre o direito à vida, o direito à dignidade. Depois, fui fazer o doutoramento também em Inglaterra, no departamento de desenvolvimento internacional e aí estudei o movimento UNITA, movimento SPLM do Sudão do Sul, e como estes dois movimentos de libertação conseguiram criar um estado paralelo nos seus países, nas suas zonas livres, respectivamente, e como a UNITA conseguiu ultrapassar a derrota militar de 2002, para construir um partido político – hoje com o mesmo poder – e o SPLM, que chegou a governar em 2011, após a independência e hoje a enfrentar uma guerra fratricida de genocídio muito complicado. Foi exactamente a constituição dos órgãos políticos da UNITA, o desenvolvimento das estruturas partidárias e de liderança dentro da UNITA que a ajudou a essa sobrevivência política. Isto deve-se muito também à velha guarda da UNITA e do mais velho presidente fundador Jonas Savimbi que muito apoiou a criação de quadros, muito ensinou também os princípios ideológicos, o centralismo democrático que ainda se pratica na UNITA.(…)
F&N – A UNITA fez sempre um grande investimento na missão externa. Investiu em gente que soube vender exactamente a sua imagem ao mundo exterior. Mas houve alturas em que quando a imagem da UNITA estava um bocado desgastada, sobretudo nas questões das sanções internacionais, havia um apelo dos seus representantes no exterior ao presidente Savimbi, no sentido de alterar o estado de coisas em que ele simplesmente continuou a seguir à sua vontade ou pelo menos naquilo que ele achava que era justo! Isto também não prejudicou a própria imagem da UNITA?
PCR: Sem dúvidas, sem dúvidas. Fez-se muitos erros nos anos 90, até a própria forma como as cidades do Huambo e a do Cuíto ter sido difícil consolidar o legado histórico da UNITA, porque as populações que ainda estão lá e sobreviveram da guerra das cidades, lembram-se muito bem das atrocidades que viveram e isso digo no Huambo e no Bié, mas também foi espalhada noutras províncias. Foram atrocidades que ocorreram em ambos os lados. Os aspectos desenvolvidos para que a guerra acabasse foi muito difícil. As sanções decretadas pela primeira vez, sobretudo as sanções da ONU, implementadas contra o partido político, no caso de Angola, provou que sem dúvidas elas têm um poder de asfixia em termos logísticos ,em termos de tranquilidade internacional ; Aliás, nos anos 90, a Unita foi, pela primeira vez na história das Nações Unidas, derrotada como partido e deve-se dizer também, especificamente, que os impulsionadores foram os EUA. A UNITA foi classificada como uma ameaça à segurança nacional dos EUA, e como grupo (…) não sei se foi denotado como grupo de terrorismo… Foi uma conotação em termos de níveis internacionais que levou com que a UNITA ficasse cada vez mais isolada diplomaticamente. Foi um erro.
As Nações Unidas fizeram muitos erros também em Angola, nunca se deve isolar nenhuma força bélica. Tem que criar espaço para o diálogo, mesmo que há pouca esperança de entendimento mútuo. Tem que haver sempre um espaço político neutro que possa negociar a paz, porque nós não podemos esquecer que há milhões de angolanos que sentiram que perderam uma guerra também. Nem foi unicamente a liderança, os militares da UNITA também.
Eu, na altura, em 2002 – 2004, estava em Angola e fiz alguns trabalhos para organizações de direitos humanos. Fui às áreas de aquartelamento dos ex – combatentes da UNITA, fui aos campos de refugiados que saíam do Congo para o Moxico e a várias zonas do Moxico, bem como aos campos de acolhimento de deslocados internos. E lembro-me, senti das muitas entrevistas que eu fiz (…).Estas populações disseram: “nós agora somos apenas visitas, esta terra já não nos pertence”. E eu pensei: meu Deus! o quê que isso quer dizer?! E fui reflectindo que esta população que é a população da UNITA não se revia na governação do MPLA, a nação, o projecto político, o projecto de uma sociedade destruído quando a UNITA perdeu a guerra e as pessoas sentiam-se sem pátria e sem noção, ou seja, responsabilidade de as integrar. Foram descartadas totalmente tanto do lado da UNITA que mais tarde foi criticada, como também do MPLA. Eu diria que em Angola ainda não houve uma reconciliação nacional e que esta dificuldade de unir todas nações dentro de Angola, ainda está-se por fazer.(…)
F&N – Reconciliação interna que fala da UNITA, depende do MPLA ou depende sobretudo da UNITA?
PCR: A reconciliação interna da UNITA?
F&N – Exactamente…
PCR: Eu estava a falar da reconciliação interna do MPLA. Eu acho que ambos os partidos têm que fazer a paz com as suas histórias. (…)O 27 de Maio de 77 do MPLA foi muito marcante deixou muitas fissuras.
Agora há ainda mais divisões dentro do MPLA por causa das facções originadas por João Lourenço e José Eduardo dos Santos, e isto não é bom para Angola. Partidos fragilizados são partidos onde facilmente entra o radicalismo. Nós vimos um partido fragilizado dentro e agora em relação a João Lourenço está-se a criar um grupo muito mais securitário. Nós vimos um grupo de generais que tem muito poder em Angola e são cada vez mais autocráticos. Isso não é bom Angola. Por isso, o MPLA tem um trabalho a fazer, o de reconhecimento interno deles e a Unita também, porque a Unita também tem um passado difícil. Todos os partidos o têm, mas tem que haver reconciliação porque é na união que a força surge. (…)
F&N – A Unita de 2002, depois da morte do Dr. Savimbi, teve pelo menos o condão de alguma franja na sociedade, sobretudo em Luanda, encará-la de forma diferente. Esta foi uma panaceia milagrosa ou resultou exactamente duma liderança com alguma elevação ou foi um processo natural?
PCR: Eu acho que o trabalho que o presidente Samakuva fez contrariou muito a ideia da Unita como partido bélico, com imagem militarizada. O presidente Samakuva fez um trabalho excepcional em mudar a perspectiva, mudar as ideias de que a Unita representava e isso é um mérito que é dele e dos líderes da Unita que na altura ajudaram a transição. Foi um trabalho que não foi fácil e durou muito tempo. Não se esqueçam que a demografia política sempre pôs Luanda dentro da influência do MPLA e hoje quem domina Luanda é a Unita. Muito por parte do trabalho da liderança e dos quadros da Unita, mas muito também pelos anti-corpos criados pela governação do MPLA; uma má governação em Luanda, onde há níveis de pobreza urbana que só existiram durante a guerra. As pessoas começaram a saber que de facto, toda a retórica da Unita em termos de que nós temos que combater o elitismo, temos que combater a desigualdade… são questões reais na sociedade. Por isso, sem dúvidas que o trabalho que foi feito pela Unita em Luanda tem muito mérito, mas a exposição da imagem, da decadência do MPLA também contribuiu para que a população em Luanda, fosse à procura de alternância política.
F&N – O facto de ter havido o divisionismo entre o Eduardismo e Lourencismo entre aspas, também ajudou a fragilizar a própria imagem do MPLA?
PCR: Eu acho que a imagem do MPLA já estava fragilizada. Acho que as pessoas entraram com muito apoio ao João Lourenço, na altura, porque ele veio com o combate à corrupção e as pessoas pensaram que isto era uma forma de renovar. Até a própria Unita. Lembro-me de dizer que se a Unita tivesse feito este combate à corrupção, diriam que era vingança política em relação aos corruptos do MPLA. Mas como foi feito por um deles, pelo João Lourenço, era um processo tão importante… Foi muito bem vindo este combate à corrupção que João Lourenço instou. Mas o problema é que foi um combate muito direccionado, muito personalizado e foi um combate para apagar a influência política do seu predecessor e ele conseguiu afunilar todo o poder, centralizar o poder nos seus quadros. Na altura do Eduardismo havia, o José Eduardo dos Santos, tem o mérito também de ter sido mais apaziguador, mais conciliador, o João Lourenço não é. (…)
F&N – Diz que não há democracia em Angola. Em termos de ciências políticas, como é que classifica o regime angolano?
PCR: Autoritário !! Securitário, aliás, tenho um livro que argumenta muito que um regime que tem medo da mudança, encontra e cria, inventa, ameaça a segurança nacional para conter as mudanças políticas, naturais de qualquer processo politico. A população angolana cresceu muito em termos de perspectiva política e em termos de querer mudar de rumo. Por enquanto, hoje, nós temos um país mais autocrático.Há quem diga que é um autoritarismo competitivo! Porquê? Porque há eleições, mas isso é um processo. Eu diria que é um regime securitário onde o sector de segurança é um dos pilares que segura o presidencialismo autocrático no MPLA de João Lourenço…
F&N – Porquê que diz que a governação angolana é de uma sombra?
PCR: Porquê que a governação angolana é de sombra? Porque é sombra que existe o poder real, na presidência. Não sei se se lembra… Quando se falava muito do Futungo de Belas, não é o que se chama agora, mas na altura do JES… É nas sombras que existe o poder real, é na presidência, nas duas superestruturas da Casa Civil e da Casa de Segurança que são os portfólios, os pelouros mais estratégicos de Angola. São geridos na presidência. Não é Executivo, não é poder legislativo, não são as próprias estruturas partidárias do MPLA que têm o poder. É unicamente a presidência que tem o poder real. A isto chamo de governo das sombras.
F&N – Quando dizia que as eleições em Angola foram ganhas pela oposição… no caso Unita, o elemento de reforço resultou do facto desta vez a Unita ter arregimentado ou pelo menos federado um grupo de partidos políticos de tal Frente Patriota esta é a panaceia milagrosa que as coisas se alterem no futuro?
PCR: Acho que sim, acho que a coligação, a Frente Patriótica Unida, foi uma estratégia muito potente, muito forte. Acho também louvável o que o presidente Adalberto da Costa Júnior fez em termos de incluir a sociedade civil, incluir jovens activistas, e ele próprio ter um discurso apaziguador, dizendo que estava pronto para trabalhar com o MPLA, que está pronto para trabalhar com todos que querem uma Angola diferente. Isso foi muito importante porque não se esqueça também que, dentro do MPLA, muitos votaram na Unita e estamos a falar de elites, estamos a falar de forças de segurança que votaram pela Unita; ou seja, foi muito importante a coligação da FPU, sem dúvidas; mas também foi importante ver a Unita com uma alternância credível e uma Unita que estava a auscultar a sociedade civil, que estava a auscultar os jovens e que também era aberta para falar com quadros do MPLA e que eles pudessem se juntar a uma governação em termos de ajudar a governar o país (…). Eu acho que é muito importante, porque para Angola vencer, todos temos que trabalhar juntos.
F&N – As eleições de 2022 tiveram alguns aspectos que vão desafiar exatamente a ciência política, nomeadamente o facto curioso, se quisermos de, pela primeira vez, os filhos dos antigos líderes tenham feito apelo ao voto ao contrário, chamemos assim. Como avalia exactamente esse tipo de posicionamento?
PCR: Acho que faz parte do processo político em maturação. Acho que as pessoas não têm que carregar os legados dos pais. Têm o direito de pensarem por si próprios. Acho que foi interessante ouvir a Tchizé dos Santos e a Isabel dos Santos, como também um dos filhos do mais velho Savimbi. É importante no pluralismo político que haja divergências de pensamento. É natural que isso aconteça. Não vejo mal nisto.
F&N – Este pluralismo político não pode ser também um caderno de reconciliação nacional entre angolanos?
PCR: Sem dúvidas, sem dúvidas… Aliás, democracia é um pressuposto importante do pluralismo; pluralismo dos pensamentos de identidades, ideologias, de projectos políticos, projectos sociais e é nas diferenças que nós encontramos as respostas todas. Não pode haver assimilação de pensamentos.
F&N – 2022 foi também marcado por um movimento que agora vou desafia-lá na condição de antropóloga. O movimento cultural que foi o óbito do Nagrelha, um kudurista angolano. Se tivesse que fazer exactamente uma espécie de observação, quais seriam os ângulos de análise e abordagem que faria por causa daquele movimento que arregimentou muita gente? Nem sequer em determinadas circunstâncias os partidos políticos na altura da campanha conseguiram arregimentar tanta gente como aconteceu no funeral do Nagrelha…
PCR: Não sei, mas agora analiso a questão doutra forma. Não será que a onda da população que vimos em Luanda no funeral do Nagrelha, não foi resultado de uma frustração que adveio do silêncio da Unita e da FPU, depois das eleições?
Porque a Unita fez aquela marcha de liberdade, depois daquelas eleições e nós vimos aquela mesma adesão. Mas não será que a população está a precisar de uma escapatória para conseguir libertar toda a frustração e a desilusão que sentiram? Porque elas votaram pela mudança na sua vasta maioria. Luanda lutou contra o MPLA e não tiveram um momento de libertar esses sentimentos e, se calhar, o funeral do Nagrelha deu-lhes uma plataforma pacífica onde pudessem fazê-lo. Não sei, eu diria mais na base, mas porquê? Porque eu não duvido que se a Unita tiver que amanhã chamar uma manifestação, as pessoas vão aderir se a causa for real.
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