Página Aberta

Florbela Catarina Malaquias: “NASCEMOS TODOS IGUAIS EM DIREITOS E DIGNIDADE!”

Escrito por figurasnegocios

Trinta anos depois de Anália Victória Pereira, ter sido a primeira mulher a participar como cabeça de lista nas Primeiras Eleições Gerais em Angola, quando as mulheres nunca mais tinham dado o ar da sua graça, nas quintas, aparece Florbela Catarina Malaquias, a líder do partido HUMANISTA EM ANGOLA (PHA), a desafiar tudo e todos, predisposta a conquistar o cargo mais alto do País: não o conseguiu, mas, entre as oito forças partidárias concorrentes ao pleito eleitoral de 24 de Agosto de 2022, o PHA e a líder conseguiram, com um total de 1,02% dos votos dos angolanos, o quinto lugar, tendo o direito de sentar-se na Assembleia Nacional.

Figuras & Negócios (F&N): O processo tanto quanto apreciamos, não pareceu fácil. Criar o partido e ser aceite pelo Tribunal Constitucional, preparar-se para as  campanhas e fazer tudo ao lado de pessoas com alguma estrada política, enfim…concorrer pela primeira vez às Eleições e sair em 4º lugar, tendo  conseguido alcançar dois assentos na Assembleia Nacional… não foi fácil…

Bela Malaquias (BM): Percorrer o país e sentir a vibração dos cidadãos, das cidadãs, de todos aqueles que acolhiam as nossas propostas radicalmente diferentes àquelas a que nos habituamos, foi uma experiência bastante empolgante. E, então, foi com um entusiasmo muito grande participar do processo. Senti-me bastante reconfortada.

F&N: Anália Pereira concorreu em 1992.Trinta anos depois, a senhora  traz novamente a força feminina ao pleito eleitoral. Olhando para todo o trabalho por si desenvolvido, conseguiu sentir que os angolanos aceitaram bem o terno abraço de uma mãe?

BM: O que se me deram a perceber é que sim. É que os angolanos acreditam, as mulheres acreditam e sentem-se fortalecidas, e os homens também acreditam e muito, porque o que oiço dos homens é a dizer que preferem uma mulher a governá-los, já que os exemplos dados pelos homens durante este período não são dos melhores. Então senti ser para eles bem aceite essa outra forma de fazer política, um pouco mais com o coração, olhando nos olhos das pessoas, entendendo e sentindo o sofrimento alheio… Essa parte é requerida pelas pessoas. Deu bem para sentir.

F&N: Então não podemos dizer que foi apenas empatia, já que conseguiu ter essa impressão até dos homens angolano?

BM: Não podemos levar para o discurso da empatia, mas propriamente para o mérito que o Partido Humanista conseguiu granjear por mulheres e homens.

As mulheres pensam, raciocinam, fazem o uso da razão e entendem que uma mulher recebe melhor os seus problemas, não é empatia, é razão.

F&N: Daquilo que foi a sua campanha política, conseguiu ver que as pessoas viram no programa apresentado pelo PHA um certo reconforto!?

BM: Sem sombra de dúvidas. Tanto os homens, como as mulheres. Embora as mulheres nos ajuntamentos sejam a maioria, eu também consegui notar muito nos homens esse sentimento de reconforto e aceitação.

F&N: O que impulsionou Bela Malaquias a concorrer ao pleito?

BM: (Risos) A percepção daquilo que são os problemas do povo angolano, que tenho desde que me conheço. Eu nasci num mundo político, a minha família é política, e nunca me conformei com o sofrimento, a miséria, a exclusão em que vive a maioria dos angolanos depois da independência.

Eu tenho para mim que antes da independência eram dois lados, os colonialistas e os colonizados. O que não entendo e nunca me conformou é que, depois da independência, continuassem a prevalecer dois lados.

Aquele segundo lado que na altura se opunha aos colonialistas, devia ter permanecido como um só até então. Aconteceu diferente e o lado que em conjunto lutou pela independência, depois fracturou-se, e foi repetindo e agravando o modus operandi dos colonialistas. Então, nunca me conformei com isso, porque os angolanos sofreram e morreram muito, para atingirem a independência. Então o normal era que depois todos vivessem em harmonia, para partilhar o país, as suas riquezas, e ultrapassar a pobreza, o analfabetismo e em conjunto atingir-se um bom nível de desenvolvimento, pois que meio século de independência é bastante para se atingirem bons níveis. Nós infelizmente ainda estamos no fundo do poço e é tudo isso que me mobiliza para uma política mais activa.

F&N: Família política, e vem da UNITA, onde começou a fazer política. O que é que a Bela Malaquias pode deixar aqui destapado como sendo da  escola política da UNITA?

BM: Na verdade a minha escola política foi a minha casa, a minha família. Há-de entender que, alguém que cresce na condição em que cresci, forja-se politicamente a ferro e fogo. Crescer num campo de concentração a partir dos 11, 12 anos, é a escola mais dura por onde alguém pode passar para se forjar politicamente.

Nós pequeninos, acompanhávamos os serões, os encontros dos presos, a arquitectarem como sair dalí e usufruir da sua Angola. As conversas dos mais velhos sobre o sofrimento do povo… A gente vivia como irmão ali dentro, mas estávamos todos presos e a lutar pelo mesmo sonho: sair daí, ver a independência chegar e depois virmos todos fazer a festa e podermos visualizar um país de todos os angolanos.

F&N: (Risos) E que escola…! Porque nunca ouvi ninguém que esteve num campo de concentração e que fale com tanta emoção, sem qualquer sinal aparente de frustração…

BM: (Risos) Apesar de me terem sido retiradas algumas coisas da infância, fui muito feliz. Pode ver o paradoxo que isso é?! Porque aí o adversário não era o angolano, e nós olhávamos para qualquer angolano como um verdadeiro irmão. A pessoa estava segura de que, qualquer coisa, pedia socorro aqui, fugia para lá, mas acolá, estava quem me abraçasse, quem me desse guarida. Mas hoje chegamos a um nível, em que todos desconfiam de todos. Todos têm medo de todos. Isto é deprimente.

F&N: E aqui, abrindo um parênteses, diga-me, Bela Malaquias, a independência de Angola foi para si como que uma grande desilusão…

BM: Completamente. Total desilusão e tristeza extrema. Miséria! Não estava à espera e eu não sei o que é que habita nas cabeças e corações de homens que provocam tanto sofrimento a outros homens. Isto, a mim, faz-me confusão de ver.

F&N: A União Nacional para a Independência Total de Angola foi então parte da sua infância e família?

BM: É como eu digo: Se alguém nasce numa família protestante, essa pessoa é protestante! Então a minha vida é um bocado isso: eu, filha de um pai que na altura se juntou à UNITA para lutar pela libertação de Angola, foi para mim como que uma continuidade.

Quando começou a lutar pela independência de Angola, o meu pai formou uma das células da UNITA no Moxico, com alguns amigos… Eu miúda, que vivia com ele, cresci e quando comecei a fazer política foi na UNITA que fui encontrada na altura da guerra armada. Não foi propriamente uma escolha, mas foi aí que estive.

F&N: MPLA e UNITA desde 1975, e depois da independência tornaram-se verdadeiros rivais. Hoje é preciso que apareçam alguns com um papel bem mais de apagar o fogo. É o caso do PHA?

BM: Bem, eu direi que aquilo que me moveu foi a saturação de ver essa bipartidarização permanentemente conflituosa, que não chega a um ponto final.

É preciso os angolanos dizerem “basta!”.Já lutamos, já nos matamos, e agora, chega. Não, não acontece. Pararam as armas, mas o conflito na verdade continua. Então isso é saturante. As pessoas precisam ter outras ideias, pois  vivemos permanentemente estressados, porque a sociedade, do ponto de vista emocional, moral e psicologicamente, é toda afectada por essa falta de entendimento. Daí que decidimos aparecer para ser uma segunda via, para que as pessoas venham experimentar novos ares.

F&N: Acredita na verdadeira mudança? Na transformação das mentes angolanas, que nós possamos voltar a viver como irmãos, de facto?

BM: Acredito. Acredito piamente. O que importa é que se saia dessa bipolaridade. Porque os angolanos estão a ver-se como inimigos de sangue.

Nós que não temos nada a ver com guerras anteriores, com inimizades anteriores, achamos que conseguiremos levar ao momento em que todos poderão abraçar a todos do fundo do coração, sem reservas.

F&N: É chegada a hora de poder representar o povo na Assembleia Nacional e discutir, fazer parte da aprovação das leis. Como sente e como os angolanos podem esperar o seu posicionamento?

BM: É simples. Quando a atenção estiver voltada para o cidadão, olhando para todas as pessoas de forma igual, que têm os mesmos direitos, para aquele que se senta na Assembleia Nacional sempre será muito simples legislar. Porque é precisamente esse o nosso trabalho, nada mais do que nos colocarmos no lugar do outro e pensarmos como gostaria que fosse connosco.

F&N: Esperava os resultados obtidos por si nas Eleições de 24 de Agosto?

BM: Sinceramente esperava. Embora ter tido  pouquíssimo tempo, esperava. Pelo trabalho que fizemos e pela recepção que teve a nossa mensagem, a percepção com que fiquei é que as pessoas estavam à espera dessa palavra: Humanismo.

Porque o angolano sente-se desumanizado e estava à procura de algo que fosse ao encontro do que de facto falta. E nós tivemos a iluminação, por assim dizer, de dizer: Partido Humanista, vamos humanizar!

E a satisfação que eu tenho é que é uma palavra que não estava no léxico dos angolanos, mas que agora entrou. Todos os partidos agora falam em humanismo, e isso é a minha satisfação, sem limites. Ainda que for de boca para fora, a plasticidade dos nossos cérebros vai fazer com que fique em nós, e vamos começar a nos comportar de uma outra forma.

F&N: E se calhar o maior prazer é que não são apenas os partidos políticos. Certo?

BM: Os cidadãos, as mulheres, as crianças, falam de humanismo. Isso é uma grande conquista, uma grande vitória para todos nós. Porque aquele que foi empobrecido, ele vai ter um arrimo.

F&N: Numa palavra, Bela Malaquias quererá chegar à igualdade?

BM: Claro que sim. Igualdade entre os povos, igualdade social, igualdade cultural e tribal, igualdade entre homens e mulheres,porque quem cria a desigualdade são os homens. Nascemos todos iguais em direitos e em dignidade. Agora, é criminoso um ser humano achar-se superior ao outro. Com que direito e desplante um cidadão se arroga a dizer e/ou achar a sua cultura superior a de outro?! Ao ponto de desqualificar as línguas nacionais, os próprios falantes dessas sentirem complexo em falarem, não se ter veículo de comunicação das suas próprias línguas… Isso é tudo muito estranho. Então a minha meta, o meu esforço, o meu trabalho, vai nesse sentido. E o PHA aparece aqui, para mim, como uma ferramenta apenas.

F&N: Diz isso pelo facto de haver na nossa sociedade restrições nalgumas acções, que se podem fazer apenas por via de um partido político?

BM: Claramente. Aqui em Angola há coisas que não são permitidas fazer fora dos partidos. Então, se a única ferramenta para se fazer isso e aquilo é essa, cá estamos e já que o PHA existe, agora resta-nos trabalhar.

F&N: Se tivesse de mudar algo agora.. já já… No que pegava para transformar?

BM: Pegava nas mulheres, libertava as terras e no acesso a água. Porque temos ali uma força apagada e ignorada que são as mulheres. Que têm energia física e cérebro para pensar e uma forma própria para pensar e de reproduzir a vida, mas que parecem fantasmas: estão, mas não estão em lugar nenhum.

F&N: Gostava de ouvi-la falar sobre o que foi a participação dos outros partidos políticos nas recentes eleições…

BM: Esta é uma tarefa difícil. A percepção é muito parcial porque eu estive envolvida, as minhas atenções acabaram por ficar por aquilo que eu estava a fazer. Estive extremamente atarefada e só agora é que vou parar para analisar…

F&N: O que lhe apraz agora dizer à Nação angolana?

BM: A minha mensagem é de humanização. Precisamos de nos humanizar a nós próprios, precisamos de humanizar a sociedade, os serviços… preocupantemente, quase que mal nos podemos relacionar com os bancos, hospitais, escolas, enfim, está tudo uma desgraça.

Então a minha mensagem é que nos humanizemos. Étienne de La Boétie fala no discurso de transmissão voluntária das ditaduras, que essas se transmitem em cascata, se os elos de transmissão não estiverem aí, não há ditadura, porque ninguém, sozinho, consegue fazer sofrer as pessoas.

Sobre o autor

figurasnegocios

Deixe um comentário