África

República Democrática do Congo: CAUSAS INTERNAS DE UMA GUERRA ENTRE CONGOLESES

Escrito por figurasnegocios

Patient Ligodi fornece algumas pistas de reflexão para aproximar o leitor à percepção de uma parte das causas do conflito na RDC. Pode-se falar de um conflito ou de vários conflitos interligados?

Texto: Manuel Muanza (Jornalista)
Fotos: Arquivo F&N

Refuta a redução da crise à exploração de minérios e à disputa entre hutus e tutsis. Em artigo publicado pela RFI, Ligodi propõe pontos-chave para a compreensão das tensões na região de Kivu: factores históricos, conflitos fundiários, de segurança e factores políticos, todos dominantes há mais de três décadas.

DEMOGRAFIA – Socorrendo-se dos estudos científicos, o articulista aponta a localização geográfica de Kivu como estando distante das zonas afectadas pela mosca tsé-tsé, ideal para a agricultura e pastorícia.

Este panorama favoreceu a densidade populacional do Kivu, atraindo, desde o século XVIII, populações banyaruanda (idos do actual Ruanda).

Os banyaruanda conquistaram, por consequência, a cidadania congolesa em pé de igualdade com grupos como os Bashi e os Banande. A partir de 1930, a colonização belga consentiu fluxos migratórios de ruandeses para Kivu, a Norte do Lago

Kivu. Mais de 150.000 pessoas idos do Ruanda instalaram-se, entre 1928 e 1956, para trabalhar nas explorações mineiras e agrícolas europeias, pois as populações locais (em Masisi, ponto de conflitos actuais) do grupo Hunde rejeitavam empregos oferecidos por colonos.

Masisi passou então de 12 habitantes por quilómetro quadrado em 1940 a 111 habitantes/km2 em 1990.

O bovino passou de 21.000 cabeças em 1959 a 113.000 em 1983. Isto provocou pressões sobre as terras gerando rivalidades.

Em 1958 rebentaram as primeiras escaramuças de índole política, na altura das eleições municipais, com recusa ao direito de voto imposto a migrantes, embora cidadãos reconhecidos.

O regime político de Joseph Mobutu (1965-1997) apaziguou a região mantendo nos cargos administradores oriundos de outras regiões do país.

A recusa do direito à cidadania quando do recenseamento nacional, em 1991, aos instalados no tempo colonial fomentou violência em Masisi até 1994. A disputa agravou-se com a chegada, em 1994, de 1,5 milhões de refugiados ruandeses Hutus.

Nesta altura viu-se entre os refugiados muitos antigos militares de Juvenal Habyarimana (1973-1994). Tratou-se, aqui, do começo do desequilíbrio entre os grupos étnicos locais, pondo em causa a atribulada relação entre Hutus e Tutsi congoleses.

A presença de refugiados, em 1994, acentuou a divisão das populações.

Os anteriormente vistos como pertencentes a um grupo Banyaruanda passaram a ser repartidos por Hutu e Tutsi. No fundo, a situação passou a ser manipulada por interesses económicos e por outros actores cujas agendas conduziram à insegurança.

Na visão do articulista, a “demografia instável” está entre um dos factores da crise actual. Cita estatísticas da Comissão dos movimentos da população (CMP), segundo as quais 2,7 milhões de pessoas deslocaram-se para o Norte-Kivu e 1,7 milhões para o Sul-Kivu desde Janeiro de 2025 devido ao conflito.

CRISE FUNDIÁRIA NO KIVU – Com o controlo de Goma (Norte-Kivu) pela rebelião AFC/M23 (Alliance Fleuve Congo), em 2024, os aldeões, ao regressarem às áreas de origem, viram as suas terras ocupadas. Isto provocou novos conflitos. “O acesso à terra é um dos factores-chave de tensões e conflitos, porém subestimado”.

Fazendo alusão a estudos de especialistas, Patient Ligodi diz que o problema fundiário “não se limita à ocupação física de terras: remete para sistemas jurídicos concorrentes, práticas costumeiras enraizadas em regimes legislativos estáticos e para uma história de deslocações e regressos forçados”.

“A sobreposição do direito costumeiro e do direito do estado gerou reivindicações conflituosas: alguns exigem acesso à terra para cultivo, outros para a pastorícia, enquanto uns ainda reivindicam um direito à propriedade formal. Não há alinhamento do sistema formal estatal ao sistema costumeiro”, de tal modo a ambiguidade do papel do poder costumeiro e a da autoridade pública alimenta tensões.

Reportando-se a outros estudos, demonstra que o conflito fundiário não se circunscreve à região de Kivu.

Toca também agricultores e pastores em Ituri. Nesta região, rivalidades entre comunidades Hema (pastores) e Lendu (agricultores) datam da época anterior à independência (1960) do Congo Democrático.

Patient Ligodi aconselha a olhar para a evolução histórica da legislação fundiária. Antes da colonização, o direito fundiário assentava na tradição oral. Os colonos introduziram um novo sistema com vista a ceder terras para plantações. Ao longo do mandato, Joseph Mobutu impôs novas regras.

Daí em diante, cada reforma fundiária infringiu novos desequilíbrios.

Citando peritos, Ligodi lembra a ligação dos africanos à terra e o “valor económico e simbólico forte”. Por isso, a mudança de estatuto jurídico da terra ou a sua contestação introduz conflitos sociais graves.

RIQUEZAS MINERAIS NO CONFLITO REGIONAL – Os recursos minerais estão longe de ser o único factor, embora “alimentem a uma economia paralela potente”, considera o articulista. Grupos armados, redes de contrabando, operadores económicos locais e estrangeiros beneficiam.

A título de exemplo, a RFI refere-se a pelo menos 1.600 empresas dedicadas à exploração ilegal dos minérios, segundo declarações de Jean-Jacques Purusi, governador do Sul-Kivu à Assembleia nationale francesa. Pelo menos cerca de 750.000 quilogramas de ouro são extraídos semestralmente e despachados para o refino no Ruanda, predominando um esquema de corrupção em toda a cadeia, da extracção à fusão em barras. Em 2023, foram suspensas actividades mineiras e impostas medidas de bancarização, porém as reformas conheceram relativo impacto com a tomada da região pela rebelião da AFC/M23. A organização rebelde designou um administrador paralelo e ditou regras próprias.

O vizinho Ruanda rejeita as acusações sobre o envolvimento na extracção de minérios na RDCongo, dizendo-se detentor de recursos minerais.

Segundo a RFI, Ruanda alega dar provas de transparência na produção e comércio com a existência de um acordo nesta matéria com a União

Europeia, em Junho de 2024. Ruanda vangloria-se de albergar no seu território investidores africanos e europeus na indústria mineira. Ruanda refere-se aos investimentos na fundição do estanho, refinação do ouro e do tântalo.

Citando especialistas, o articulista da RFI diz que o ouro é o mineral que tem gerado mais conflitos na região, dado o seu valor comercial, facilidade de transporte e cuja origem é difícil de estabelecer quando fundido.

FDLR: UMA PEDRA NO SAPATO – As Forças Democráticas de Libertação do Ruanda (FDLR) presentes na RDCongo são tidas como responsáveis pela violência no Leste.

Enquanto Kinshasa acusa Ruanda   de apoiar AFC/M23, Kigali responsabiliza o vizinho pelos ataques ao seu território atribuídos às FDLR.

Criadas em 2000 por Hutus ruandeses, entre os quais algumas milícias e tropas regulares implicadas no genocídio dos Tutsi, em 1994, as FDLR estão activas no Leste da RDC.

Esforços diplomáticos não põem fim às acusações mútuas, mesmo depois de a RDC ter ordenado publicamente a cessação de contactos entre o exército regular e as FDLR. Na ONU, o embaixador norte-americano, Robert Wood, solicitou à RDC a cessação de laços com a FDLR e ao Ruanda a retirar o apoio à AFC/M23. Nada aconteceu na prática.

No entender de Patient Ligodi, a persistência de conflitos no Leste da RDC deve-se também à “fraquezas estrutural do estado congolês”, não atribuível apenas à escassez de meios e recursos humanos. “Consiste numa incapacidade quase crónica de exercer as funções de base que se espera de um estado soberano”. “No papel, o Estado existe, mas na realidade quotidiana, as suas funções básicas são largamente deficientes, tais como o controlo do território, a cobrança de impostos ou a oferta dos serviços públicos”, escreve Lidogi citando o académico Filip Reyntjens.

Trata-se de um quadro favorável à instalação de grupos armados, ingerência dos exércitos estrangeiros e exploração ilegal de recursos naturais por actores locais ou transnacionais.

Consta ainda como factor da instabilidade no Leste da RDC a manipulação dos factos históricos em proveito de uns ou outros, a reinterpretação da história para servir interesses políticos e comunitários. Entre outros elementos da história citam-se a contestação das fronteiras herdadas da colonização e a mobilização da narrativa das vítimas do genocídio de 1994.

A instrumentalização obtida por esta via ergue obstáculos a um compromisso para pôr fim aos conflitos.

 

 

Sobre o autor

figurasnegocios

Deixe um comentário