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Domingos Simões Pereira, líder do PAIGC “NÓS TEMOS O DIREITO DE PARTICIPAR NAS ELEIÇÕES”

Escrito por figurasnegocios

“NÓS TEMOS O DIREITO DE PARTICIPAR NAS ELEIÇÕES”

Na Guiné-Bissau, a justiça está a ser usada para cumprir agendas que são absolutamente políticas, acusou o antigo primeiro-ministro Domingos Simões Pereira, líder do PAIGC, o maior partido guineense, que corre o risco de se ver arredado das legislativas, previstas para dezembro próximo.

Numa entrevista exclusiva à F&N, DSP, como também é conhecido o ex-secretário executivo da CPLP, admitiu concorrer a novo mandato, e falou de várias questões polémicas, nomeadamente as tensões com Dacar, por causa de um acordo de exploração de petróleo, assinado sem o aval do Parlamento, e devido à vinda de uma missão militar da CEDEAO, que integra um contingente senegalês. Abordou também o impasse nas relações diplomáticas entre Bissau e Luanda, assim como os laços pessoas que o ligam a João Lourenço, antes mesmo deste se tornar Presidente de Angola e do MPLA.

Figuras & Negócios (F&N) – Depois de sucessivos adiamentos, o X Congresso do PAIGC ainda não tem data e aguarda-se uma decisão da justiça. Vê alguma luz ao fundo do túnel?

Domingos Simões Pereira (DSP) –  Depois de duas marcações e de dois adiamentos, é difícil prognosticar datas. Temos que reconhecer que a questão judicial foi o mecanismo encontrado por aqueles que querem a todo o custo impedir o PAIGC de realizar a sua reunião magna. Apesar do envolvimento indevido de instâncias políticas que não deviam ter nenhuma interferência no processo, vamos esgotar tudo o que for possível a nível judicial. Continuo a acreditar que em algum momento todos os actores políticos hão-de compreender que essa modalidade não funciona. Perante um partido histórico como o PAIGC, respeitador das normas internas, da Constituição da República, e que insiste em convocar a nação guineense para um quadro de diálogo e de apaziguamento, e que do outro lado tem uma determinação em fazer jogo sujo e de comprometer a justiça, eu vou preferir continuar a achar que em algum momento vamos acordar e todos vão compreender que é chegado o momento de deixar desses jogos. Aproveitamentos baixos e golpes dessa natureza terminam sempre mal. E era bom que essa compreensão fosse a mais generalizada possível. Agora eu só quero dizer uma coisa muito clara e muito simples: se o PAIGC for arredado de participar nas eleições, o processo terá todo o tipo de rótulo, menos de democrático, menos de livre e menos de transparente. E aí, não serão só os militantes do PAIGC a serem confrontados com essa realidade, mas todo o povo guineense.

Figuras & Negócios (F&N) – E o processo judicial já está esgotado? Estão à espera de quê?

D.S.P. – Aqui está o paradoxo de todo este quadro. Porque perante uma primeira providência cautelar que contestava o guião do congresso, e que o juiz caucionou, o PAIGC decidiu eliminar o guião contestado e repetir todo o processo. Em face desta decisão, o juíz compreendeu que deixou de haver assunto para contencioso. O paradoxo é que quem passou a ganhar a causa, decidiu recorrer. Ganha a causa, mas recorre, o que tecnicamente é um absurdo. Não sou jurista e nem pretendo fazer aqui uma análise jurídica, mas penso que as leis só valem quando têm alguma utilidade. Quando não tem, é um exercício absolutamente absurdo. E portanto, é o próprio vencedor do processo que recorre, para que entre em vigor a suspensão da decisão tomada pelo juiz. Assim, o juiz disse que deu razão ao queixoso e vocês se anteciparam e aplicaram a razão de acordo com o que eu tinha decidido, mas como ele recorreu, eu sou obrigado a aceitar o recurso e levá-lo ao Tribunal de Relação. E o paradoxo não termina aqui. É que chegamos ao Tribunal de Relação e este estava completamente esvaziado dos seus membros. Todos os seus juízes foram promovidos para outras instâncias, nomeadamente para o Supremo Tribunal de Justiça, e não tem elementos suficientes para reunir e apreciar quaisquer recursos que ali cheguem. E todos os processos ficam estagnados.

F&N- Face a este bloqueio, o seu partido tem um plano B?

D.S.P. – O PAIGC terá sempre um plano alternativo para todos os cenários. Não diria para contornar, mas para que as leis sejam respeitadas e tudo possa realmente acontecer a seu tempo. Desde que estou à frente do PAIGC venho alertando as pessoas que quando deixa de haver alternativas obrigam as pessoas a recorrer à violência. E este país já conheceu violência suficiente para perceber que devíamos exercer outro tipo de alternativas. Portanto, espero que as pessoas acordem a tempo de compreender que forçar a não realização do congresso do PAIGC é um absurdo.(…)

F&N – Já agora, é candidato à sua própria sucessão. Ou a questão é tabu?

D.S.P. – Repare, aqui há uma componente política e outra técnica. Tecnicamente só se é candidato no congresso, ao apresentar a moção estratégica. Agora, politicamente, será que apresentei uma moção estratégica? Sim, apresentei, que já estava até distribuída e tive que recolher uma parte delas e que vai estar nas mãos dos delegados ao congresso. Se não receber a subscrição suficiente dos delegados ao congresso, não me transformo em candidato. Mas parece evidente que terá subscrição suficiente. O problema é que eu não posso comparar a minha visão estratégica com a visão de mais ninguém, porque eu não conheço nenhuma outra visão estratégica. Fala-me por exemplo de outro possível candidato (o ex-Presidente da República Raimundo Pereira), que eventualmente terá o apoio de um antigo presidente do PAIGC. Eu não quero mencionar nomes, mas para mim também é triste verificar que pessoas que já serviram o país e o próprio partido noutras competências e que foram competências muito importantes, não perceberem que o exercício político é um exercício de serviço à nação, e esse serviço à nação tem que ser em todas as escalas alinhadas com princípios que sejam aceites pela organização, neste caso a organização política que é o PAIGC. Repare, em 2017, por minha iniciativa lançamos a primeira convenção do partido. Fiz questão de convidar todas essas pessoas que estavam fora da direção a participar na convenção, e deste modo tiveram a possibilidade, por cooptação, de reintegrar a direcção e de participar directamente no congresso seguinte, sem necessidade de passarem pelo processo eleitoral nas bases. E no congresso tiveram o mesmo direito que eu tive. Posso citar-lhe os nomes de algumas das personalidades que convidamos, nomeadamente os ex-Presidentes da República Serifo Nhamadjo e Raimundo Pereira, assim como os antigos primeiros-ministros Rui Barros e Aristides Gomes, e também o conhecido economista Paulo Gomes, que no entanto não compareceu ao evento.(…)

F&N – Acha que o objectivo é forçar a barra para afastar Domingos e assim abrir caminho aos seus concorrentes?

D.S.P. –  Absolutamente. Todo o mundo já percebeu que esse é o objectivo do bloqueio ao congresso. Aliás, eu já recebi vários recados nesse sentido. Se se afasta, todos os problemas terminam e aí tudo volta a normalidade. É triste e vergonhoso.

F&N – Não admitem a possibilidade de fazer aliança circunstancial com outra força política para contornar este bloqueio?

D.S.P. – Tecnicamente este cenário é possível, mas politicamente o PAIGC não considera esta opção, pelo menos neste momento. O PAIGC lutou para a libertação da Guiné-Bissau, para que o conjunto dos direitos políticos e civis sejam respeitados. Se nos encontrarmos perante a necessidade de voltar a fazer uma luta para libertar o país desta necessidade, vamos ter que a enfrentar. Mas não pensamos que seja aceitável que agendas particulares ou de grupos possam comprometer aquilo que é a essência do próprio processo de libertação. Não aceitamos essa condição.

F&N – E na eventualidade do processo se complicar e persistir o bloqueio ao congresso, que arranjos tencionam fazer?

D.S.P. – O PAIGC sempre esteve aberto e vai continuar aberto a falar com todas as forças políticas, nomeadamente aquelas que partilham o seu espaço de concertação. Agora, o que nós defendemos é que todos os partidos têm o direito de realizar a sua reunião magna, e decidir em liberdade, não como uma alternativa ou opção. Não, nós temos o direito de realizar o nosso congresso e de participar nas eleições. E vamos fazê-lo. Vai haver desafios, vai haver dificuldades, mas esta parece ser a nossa sina.(…)

F&N – As Nações Unidas, através do PNUD, tem um projecto de apoiar o relançamento do diálogo político interpartidário. Como encara esta ideia?

D.S.P. – Obviamente que apoiaria essa iniciativa. O único senão é que o PNUD às vezes tem dificuldades em pôr o dedo na ferida. Um exemplo que ilustra esta atitude é o de alguém que perde uma moeda num sítio escuro, acha que ali é muito difícil encontrar a moeda, e prefere ir procurar onde há luz, só que não a perdeu onde há luz. Portanto, não faz sentido nenhum. Se nós vamos dissolver o Parlamento para evitar que haja debate sobre assuntos fracturantes, se nós inviabilizamos o funcionamento da Comissão de Diálogo e Reconciliação Nacional, agora vamos propor outros mecanismos? Quer dizer, mecanismos que eventualmente tenham que se ajustar a aquilo que é a vontade de uns. Chamamos a isso diálogo? Porque todo o diálogo devia ser no sentido de aceitarmos a aplicação das leis, o respeito dos princípios e ter a Constituição como a lei suprema. Quando alguém acha que a Constituição não lhe dá o que ele quer e que por isso tem que mudar a Constituição, propor que haja diálogo no sentido de chegarmos a um consenso… Sobre o quê? Para lhe dar o que ele quer?

F&N – Não havendo também este diálogo, seria o impasse?

D.S.P. – Exactamente! Por isso, na justa medida, todas essas instâncias, o PNUD, a União Europeia e organizações afins, deviam assumir as suas responsabilidades. A União Africana e a CEDEAO, que têm as suas cimeiras de chefes de Estado, se a dificuldade está a nível dos chefes de Estado, deviam era ter capacidade de controlo dos pares, e os pares que estabeleçam padrões e com base nesses padrões verificar qual o país que está a cumprir e qual o país que não está a cumprir. Ora, os Presidentes recusam a aplicação das leis e multiplicam cimeiras para encontrar soluções.

F&N – Alguns observadores consideram que a ordem do dia da última plenária do Parlamento era susceptível de incendiar o país…

D.S.P. – Esta asserção é no mínimo curiosa. No fundo, traduzida em miúdos, significa que debater no Parlamento aquilo de que todo o mundo fala nas ruas é incendiar o país. Por isso é que eu perguntava: se não se debater na Assembleia as pessoas deixam de questionar cá fora? Será que nós enquanto guineenses não estamos curiosos em saber o que está a acontecer com o acordo sobre o petróleo? Será que não estamos interessados em saber o que vai acontecer em relação à intenção da tal revisão constitucional?

F&N – Com a Assembleia dissolvida, qual é o quadro para o tratamento destas questões fraturantes?

D.S.P. –  Há um responsável. É que o Presidente da República chamou a si todas essas competências, o que significa que amanhã, havendo indícios de qualquer posicionamento que seja diferente daquilo que era o sinal, não só Assembleia, mas também da Constituição, ele é o único responsável. E aqui há mais um paradoxo. O acordo sobre o petróleo é presumivelmente entre a Guiné-Bissau e o Senegal, mas em Dacar, apesar de aí vigorar um sistema de governo presidencialista, o presidente senegalês teve a obrigação de levar o texto do acordo à aprovação parlamentar, mas em Bissau dispensou-se tal requisito.

F&N – Com o argumento de que quando o falecido Presidente Nino Vieira assinou o primeiro acordo também não consultou o Parlamento…

D.S.P. – Isso não é verdade. Porque essa questão foi discutida por mim e pelo então Presidente da República José Mário Vaz e pude mostrar-lhe que Nino Vieira assinou como Presidente do Conselho da Revolução, mas na competência de chefe de Governo, porque no próprio corpo do acordo diz-se que a sua aplicação é delegada ao Governo, através dos Ministérios das Pescas e dos Recursos Naturais. Portanto, todo o processo de aplicação passava pelas estruturas governativas. Só que nessa altura o chefe de Governo também era chefe de Estado. Não tenho a mínima dúvida em relação a isso.(…)

F&N – Com as constantes violações dos direitos humanos e liberdade de imprensa e de outros direitos que se verificam no país, os guineenses parecem alimentar alguma expectativa no papel fiscalizador da comunidade internacional. Como vê o papel dos parceiros externos nesta conjuntura?

D.S.P. – Eu sempre disse e continuo a acreditar que o papel da comunidade internacional não é de substituir as nossas instituições. Terão que ser os guineenses a assumir as suas responsabilidades, a criar mecanismos de resistência, e a criar opiniões que possam meter pressão sobre o poder político, de forma a poder respeitar as regras democráticas. Agora, é óbvio que a comunidade internacional tem um papel neste contexto. E qual é esse papel? É fazer uma leitura da situação política nacional e dar a conhecer a sua posição, se está próxima daquilo que são os ditames constitucionais e democráticos, ou não está. E quando um poder se afasta daquilo que são os princípios democráticos, a comunidade internacional tem a obrigação de demonstrar indisponibilidade em acompanhar esse regime. Não precisa armar gente para vir fazer guerra ou fazer política em nosso lugar.(…)

F&N – Aparentemente, a sua inédita audiência com o Presidente Embaló tinha por razão principal defender a não dissolução da Assembleia, e não negociar a participação do PAIGC no Governo de iniciativa presidencial?

D.S.P. – Não foi só a razão principal, mas também a única razão. O problema é que a partir do momento em que se equaciona a dissolução do Parlamento, estamos a anular uma legislatura. Portanto, era e continua a ser inconcebível que eu, enquanto presidente do partido, com base nesta avaliação, não marcasse presença para que, tendo terminado uma legislatura, e estando a começar uma nova legislatura, o PAIGC possa participar no diálogo político para novas eleições. Eu seria o único responsável pelo PAIGC não poder participar no processo de diálogo para a nova legislatura. O que as pessoas confundem é exactamente isso. A partir do momento que se dissolve a Assembleia, não há legislatura. A legislatura acabou.(…)

F&N – Como é que explica a ausência do PAIGC neste governo de iniciativa presidencial?

D.S.P. – Desde o momento em que foi lançado o processo de diálogo, a nossa interpretação é de que  a X Legislatura acabou, e tendo terminado esta legislatura e iniciada a XI, com as próximas eleições, há duas opções: ou não se convida nenhum partido e cria-se um governo neutro e equidistante do jogo político, se for possível, ou faz-se de tal forma que os partidos se sintam equilibrados lá dentro. Quando se começa por colocar um primeiro-ministro, da forma como foi colocado, e um vice-primeiro-ministro, a coisa começa a ficar enviesada, e o PAIGC disse, nós já percebemos que vai ser o mais do mesmo. A nosso ver, participar ou não participar no governo não é o mais importante. Podem até ficar com o governo, desde que os princípios que defendemos sejam realmente salvaguardados. É óbvio que esta posição não é subscrita por todos dentro do partido. Quando nós, apesar de todas as promessas feitas e de tudo o que foi dito, chegamos ao dia D e essas garantias não estavam na mesa, eu concluí que não ia decidir em nome dos órgãos superiores do partido. Por isso, convoquei o Bureau Político (BP).(…)

F&N – Mas na Defesa, nas Pescas e na Administração Territorial houve troca de titulares…

D.S.P. –  Não posso confirmar ou desmentir, mas o que nos chegou aos ouvidos é que o Presidente reservava a si o direito de escolher quem é que seria colocado nessas pastas. Mas então, como ele disse desde o início é um governo dele, e se é um governo dele, estamos conversados.

F&N – Nos mais de dois anos do regime de Sissoco Embaló, verificou-se uma agravação da violência política, que culminou com o atentado contra o deputado do partido União para a Mudança, Agnelo Regalla, em maio último. Qual é a sua percepção?

D.S.P. –  Houve realmente um elevar da fasquia, que nos surpreendeu. Já conhecíamos os sequestros, as agressões e a supressão de liberdades civis políticas e individuais, mas nunca atentados com armas de fogo contra pessoas neste tipo de situações. Coloca-nos numa situação complicada. Todos ficamos apreensivos, por nós e por todos os que exercem actividade política, mas sobretudo pelo próprio país. Porque quando se chega a esse ponto, e nós sabemos que muitos daqueles que fazem essas agressões são jovens, que podem não ter a verdadeira dimensão daquilo que isso representa. Porque começar isto  até é fácil, mas a sua envolvência e as implicações, às vezes nos escapam. Por isso ficamos apreensivos. Repare que até em Portugal há confrontos entre activistas políticos guineenses na diáspora. Pessoas a serem ameaçadas de ataque se não deixarem de atacar este ou aquele, em Portugal. Quem podia imaginar a Guiné-Bissau a exportar a violência política?.

F&N – E em relação à sua pessoa, ainda vigora a proibição de viajar? E as tentativas de levantamento da sua imunidade parlamentar?

D.S.P. – Eu nem sei dizer. Terei provavelmente que comprar uma passagem para poder verificar se continua ou não, o facto é que as afirmações que são feitas apontam nesse sentido. Apesar do tribunal ter dito que não havia matéria para tal medida, e apesar da Assembleia ter reiterado a manutenção da minha imunidade parlamentar, as leis continuam a ser aplicadas de forma selectiva. E o Procurador diz claramente que não tem obrigação de respeitar o Supremo Tribunal de Justiça e não tem obrigações perante a Assembleia. Por isso é que eu disse na tal audiência que temos uma nova modalidade no país. Quem quer ser nomeado Procurador-Geral da República tem que prometer que consegue prender o Domingos. Que o venham prender e levem… agora se estão à espera de terem alguma substância jurídica para o efeito, não vão ter. Porque cada um promete quando chega e depois vai compilar os elementos e chega à conclusão que não tem nada. Eu fui primeiro-ministro durante 13 meses e antes disso fui ministro duas vezes. Portanto, deixei muitos traços, que estão nas mãos de quem exerce o poder. Se tivesse cometido alguma fraude, até hoje não descobriram nada? Então o ex-Presidente Mário Vaz não exibia um dossiê e dizia aqui está. E onde é que estão essas evidências? Agora não, agora o problema não é esse. (…)

F&N – O caso do avião suspeito de transportar droga ou armas e que estava retido na pista do aeroporto desde finais de outubro de 2021 parece ter caído no esquecimento.

D.S.P. – Eu vou lhe dizer que este assunto foi uma grande surpresa para mim. Já tinha escutado que o avião já tinha deixado Bissau, mas hoje mesmo ouvi que ainda continua cá. Sabe, isto tem a ver com a natureza de determinados regimes. Quando o Estado não se assume como pessoa de bem, e não alinha com princípios e regras claras, é nisto que dá. Todos nós enquanto cidadãos, somos impelidos a especular. Porque temos uma versão do primeiro-ministro, temos outra da Aviação Civil, do Presidente e também da Polícia Judiciária.

Nestas circunstâncias, qualquer um escolhe a versão de que mais gosta. O primeiro-ministro foi ao Parlamento dizer que o aparelho tinha algo, por isso é mandou retê-lo, mas algum tempo depois indicou que, felizmente, não tinha nada. Por seu lado, o Presidente alegou que o avião pertence a gente de bem, e que por isso é que autorizou a sua entrada. Mas depois há um perito americano que veio e garantiu que não precisa encontrar mercadoria dentro do avião, e que podia fazer peritagem para saber o que o avião andou a transportar. Mas o expert americano é detido. Mas se você sabe que o avião é de gente de bem e que só transportou mercadorias autorizadas, porque detém o especialista que veio fazer peritagem aos materiais que estavam no avião?

E agora vamos continuar a especular. E a última especulação que ouvi é que o avião não sai porque para sair tem que ter destino, e ainda não há nenhum país em condições de aceitar que vai receber o avião. Porque? Porque durante o período em que o avião ficou parado aqui criou-se uma situação a nível da segurança internacional, com todos os holofotes atentos, à espera de ver para onde vai o avião. Portanto, o país que aceitar receber o avião corre o risco atrair toda a atenção das várias agências que trabalham com as questões de terrorismo. Mais uma vez, estou a especular, porque até aqui é o que nos é dado a fazer.(…)

F&N – Outra questão problemática para o seu país é a relação com o vizinho Senegal, em particular o acordo sobre a gestão da Zona Marítima Conjunta, que o Presidente Embaló assinou com o seu homólogo de Dacar, mas que uma resolução do Parlamento de Bissau considero nulo e sem efeito. Acompanha este dossiê?

D.S.P. – Eu tive a oportunidade de falar deste assunto com o então Presidente Mário Vaz, e em pelo menos duas ocasiões com Macky Sall, o chefe de Estado senegalês, e dizer-lhe qual era a minha visão e a minha expectativa. O Senegal é um país estável e uma democracia já bastante mais consolidada e sempre considerei que podia ser uma referência positiva para a Guiné-Bissau. Numa das conversas que tive com o Presidente do Senegal, e era uma conversa absolutamente amigável, disse-lhe que, na minha avaliação, Senghor, o primeiro chefe de Estado senegalês, pode e será sempre considerado o pai do Estado senegalês, e para mim Abdou Diouf será sempre o pai da democracia senegalesa. E por esta ordem eu considero que o Presidente Abdoulaye Wade é quem lançou o programa de infraestruturação do Senegal. E depois perguntei a Macky Sall qual seria o seu legado. E ele retorquiu, perguntando-me também o que  eu achava que eles já tinham feito. Respondi-lhe que não, mas que teria de continuar um pouco daquilo que os seus predecessores já tinham feito.

E então ele quis saber a minha visão sobre o que devia ser feito. Disse-lhe que a minha visão é que ele devia ter uma agenda pan-africana. O desenvolvimento dos nossos países será muito difícil se não congregar um movimento bastante mais abrangente. Na nossa sub-região, ter um conjunto como a Guiné-Conacri, Guiné-Bissau, Gâmbia, e Senegal, numa mesma perspectiva de desenvolvimento, pode ser a grande alavanca para o nosso desenvolvimento. E acho que neste grupo de países o Senegal tem todos os requisitos para ser realmente a grande referência. Mas para que tal aconteça, é preciso que a estabilidade não seja exclusiva de Dacar, mas que também prevaleça em todos os países da sub-região. (…)

F&N – Para muitos guineenses este diferendo com o Senegal sobre o acordo na zona marítima conjunta onde há petróleo pode se revelar uma autêntica bomba atómica…

D.S.P. – Absolutamente. Países frágeis podem se dar ao luxo de permitir essas incógnitas, esses tiros no escuro. Mas um país consolidado como o Senegal não devia ir por essa via. A questão do petróleo é sempre muito sensível. Falei disso no primeiro encontro que tive com o Presidente do Senegal. Disse-lhe que subsistem estereótipos, muitos complexos e o guineense olha para o senegalês sempre como um “djila”, comerciante ambulante. Por seu lado, os senegaleses olham para o guineense, e pensam que somos todos guerreiros. E propus-lhe que nos reencontremos, que sentemos à mesma mesa, com os artistas, os fazedores de opinião, os intelectuais, e nos conhecermos, e ao conhecermo-nos, não termos o complexo de debater os nossos assuntos.

E quais são os nossos assuntos? Há um princípio da intangibilidade das fronteiras herdadas do período colonial, do respeito pelas fronteiras existentes no momento da ascensão à independência, que foi adoptado em 1958. Como é que depois descobrimos que se faz referência a um acordo de 1960, para dizer que esse acordo estabelecido é que delimita as fronteiras entre a Guiné-Bissau e o Senegal?. Naquela altura, a Guiné podia não ter muitos quadros e o Senegal provavelmente tinha muito mais, mas hoje temos. Vamos sentar à uma mesa e vamos perguntar porquê que os ângulos que definem a nossa plataforma continental têm uma curvatura, que fecha as nossas águas, enquanto que para todos os outros países é diferente. Porquê que é assim? Naquela altura, a fiel depositária da fronteira do Senegal era a França, enquanto da Guiné era Portugal. Mas nas negociações na Holanda, quem foi advogar a causa da Guiné-Bissau foi a Argélia. Manifestamente, não tínhamos os suportes necessários. Mas hoje há teses sólidas de estudiosos guineenses sobre esta matéria. (…)

F&N – Como é que explica que já se encontrou mais que uma vez com o Presidente João Lourenço, e este ainda não recebeu o Sissoco Embaló?

 D.S.P. – O Presidente de Angola é presidente do MPLA. E eu sou líder do PAIGC. E é importante as pessoas terem presente que as relações entre o MPLA e o PAIGC existiram antes mesmo da existência dos respectivos Estados. É uma relação histórica, desenvolvida pelos ex-líderes e que nós temos a obrigação de prosseguir. Eu não fui recebido só uma vez pelo Presidente João Lourenço. E o mesmo era válido para o próprio Eduardo dos Santos, com o qual me encontrei várias vezes.

Encontrei-me com João Lourenço já várias vezes, e talvez seja relevante dizer que os nossos encontros aconteceram também antes de ele ser Presidente do MPLA e presidente de Angola. Mesmo em situações particularmente difíceis para ele. E considero-o de certa forma um amigo.

Portanto, não devia estranhar às entidades oficiais um encontro entre nós, porque tem uma componente de foro pessoal e outro partidário. E tenho quase a certeza de que vai haver um encontro entre ambos, e se ainda não aconteceu deve ser porque as respectivas agendas não permitiram. Eu sei que Angola, o MPLA e o Presidente Lourenço, respeitam as instituições e com base nisso saberão separar as águas. E  havendo uma coincidência de datas, lugar ou visitas, esse encontro acontecerá. Aliás, já houve uma visita, por ocasião de uma cimeira da CPLP em Luanda. Acho que estamos perante uma tentativa de criar problemas lá onde eles não existem.(…)

F&N-Angola não tem embaixador em Bissau, mas abriu uma embaixada em Dacar…

D.S.P. – Não tem. Mas também aí está. Há uma redefinição de toda a geopolítica. Está a acontecer com a União Europeia. Se não tivermos capacidade de manter um programa de cooperação mutuamente vantajosa, as pessoas vão reequacionar o nível das relações.

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