A falta de um Museu Nacional de Arte Contemporânea é apontado pelo artista plástico Cristiano Mangovo como o principal entrave ao processo de valorização e promoção das artes plásticas angolanas. O artista aponta ao reduzido número de coleccionadores e a falta de capacidade para alavancar uma colecção de arte angolana, que possa realçar a produção artística.
Textos: Venceslau Mateus
Detentor de vários prémios, com destaque aos prémios internacionais “Ligtht of Day-Art Competition” e o de melhor artista plástico da lusofonia, Cristiano Mangovo afirma que a tecnologia não ameaça o ramo das artes plásticas, ao contrário do que sucedeu já no domínio das artes gráficas, onde a robotização assume já um papel de auxiliar da indústria.Siga na íntegra a entrevista:
Figuras & Negócios (F&N)- Quando foi que surgiu o gosto pelas artes?
Cristiano Mangovo (CM)- Nasci no seio de uma família com uma forte vocação artística. Ainda em criança, sentia-me maravilhado com o talento do meu irmão mais velho e pedia-lhe constantemente que me fizesse desenhos, mas sem grande sucesso, o que acabou por me incitar a desenvolver o meu próprio espaço de criação pessoal. Desenhava em todas as superfícies, nas paredes, no chão ou em qualquer pedaço de papel que encontrasse: apercebi-me que é algo espontâneo, que é inato e que ainda hoje não controlo.
Uns anos mais tarde, a minha tia deu-me dinheiro e gastei-o imediatamente na minha primeira caixa de guaches – altura em que comecei a pintar. Fazia principalmente reproduções de capas de filmes e de banda desenhada, como as do Lucky Luke, das Tartarugas Ninja, do Tintim, entre outros. Esta minha paixão foi-se estendendo no tempo, e um dia a minha mãe ao ver a minha honesta dedicação às artes, decidiu inscrever-me numa Escola de Artes Plásticas – abrindo-me um incomensurável universo criativo. Tenho um irmão mais novo Ben Mangovo que atualmente é um pintor autodidacta, que se enquadra no domínio da expressão artística emergente pelo facto de ter os mesmos dotes que eu.
F&N – O que significam para si as artes plásticas?
CM- As artes plásticas são uma forma de expressão que foram criadas pelo primeiro grande artista, que para mim é Deus. Ao longo de séculos o ser humano alimentou o seu impulso criativo por meio do manejo de diversos tipos de ferramentas a fim de materializar, expressar ideias, de imortalizar pensamentos ou imagens e formas de acordo com a vontade do artista. Do ponto de vista criativo e tendo em conta o contexto de evolução tecnológica a que hoje se assiste, sinto que haverá sempre um espaço consagrado à criatividade que permanecerá independente. A tecnologia não ameaça o ramo das artes plásticas, ao contrário do que sucedeu já no domínio das artes gráficas, onde a robotização assume já um papel de auxiliar da indústria. Reconheço que tudo que é feito à mão não é perfeito, mas integra a emoção singular do artista e o seu impulso criativo, o que o distingue da produção mecânica.
F&N- Diz-se que o mundo das artes plásticas é o mais caro entre todas as modalidades artísticas. Corresponde à verdade esta afirmação?
CM – Em termo de formação, acho que as despesas e o nível de investimento são equiparáveis ao que sucede com outras disciplinas artísticas, tal como as artes gráficas ou a performance. Tudo depende dos materiais usados. Se a aprendizagem é feita com materiais profissionais, o custo com certeza há-de ser alto, mas existem sempre materiais alternativos que vão permitindo contornar essa questão. Porém a aprendizagem através do uso de materiais profissionais é igualmente importante para que os estudantes – seja em Angola ou qualquer outro local – possam desenvolver capacidade de domínio em diferentes campos, então, é preciso acautelar essa condição.
F&N – Entre as várias técnicas do mundo das artes plásticas, qual delas mais trabalho dá? E porquê?
CM- Todas exigem desempenho físico, técnico e imaginação. Admito que a escultura e a cerâmica são as duas técnicas que exigem mais esforço físico. Além disso, exigem igualmente um espaço adequado para o seu exercício, bem diferente daquele que exige a pintura. Pode-se pintar tranquilamente num quarto, mas é impossível esculpir dentro de um quarto com serenidade. É apertado, já que a maioria das vezes as peças são produzidas por exemplo a partir de troncos de árvores, que é preciso talhar e lixar para dar a forma. É exigente fisicamente e o uso de instrumentos é ruidoso. Relativamente a cerâmica, além do empenho físico, exige o uso de fornos para que as peças sejam cozidas no acto de conclusão. A pintura é mais pacata, não exige tanto desempenho físico e adequa-se a espaços mais convencionais. Pode-se exercer mesmo num pequeno espaço. É algo que se repete ao longo da História com diferentes artistas. Podemos mencionar o estúdio de Francis Bacon por exemplo. Em certa altura era um quarto pequeno! Também o meu primeiro estúdio foi o meu quarto de estudante na faculdade. Dormia junto das minhas pinturas a óleo, com a tinta ainda molhada. Na verdade, nem sequer me preocupava com o cheiro.
F&N – Falando de Cristiano Mangovo, um nome sonante no mundo das artes em países europeus, como se sente face ao espaço conquistado?
CM– Ainda sou um jovem artista, e tenho um longo caminho a percorrer. Mas o lugar que alcancei foi com enorme perseverança, dedicação, coragem, sacrifício e com muito trabalho. Acredito que a minha positividade aliada a disciplina, contribui para manter um certo equilíbrio na minha vida criativa e pessoal. Sinto que a Arte contribui para um certo equilíbrio na minha alma. Apesar de todas as adversidades, sinto-me abençoado por ser artista.
Por outro lado, o meu eventual sucesso deve-se também às galerias que me representam em Lisboa, em Paris e além-fronteiras, pois tiveram a coragem de investir em mim e na minha obra, de a encaminhar e apresentar com dignidade e em lugares de prestígio, permitindo que o meio e a massa crítica reconhecessem como um artista Africano e como um artista global. Aproveito esta oportunidade para agradecer a todos os que confiam em mim e contribuem para a visibilidade da minha obra, da visão que ela compreende e para a minha realização pessoal e criativa.
Recordo que a certa altura me foi sugerido por um colega lisboeta, que deveria procurar um trabalho alternativo, porque viver exclusivamente da Arte, na capital, seria muito difícil. No entanto, não me quis render a essa condição. Resisti, lutei e hoje tenho o privilégio de expor as minhas obras tanto em Angola, em Portugal e noutras cidades Europeias, em galerias, museus, através de residências artísticas, feiras e bienais de arte contemporânea.
F&N – Está satisfeito com a visibilidade que tem no mercado?
CM- Estou satisfeito sim e persisto no sonho de que um dia a minha obra possa ser ainda mais coleccionada e exibida em grandes museus, seja em Portugal, seja em Angola, seja além-fronteiras. Agradeço a todos os que têm contribuído para o meu sucesso tanto às galerias de arte que me acompanham e me representam, como aos curadores que me têm convidado para vários projectos. Cada projecto tem somado mais e mais visibilidade à minha obra.
Recentemente inaugurei uma exposição individual em Lisboa, mais precisamente em Marvila, uma zona com uma forte presença cultural na capital portuguesa, na galeria Insofar com a curadoria da Katerine Sirois. Uma mostra que está a ser positivamente comentada a nível internacional. E neste preciso momento estou na Sérvia, a participar numa exposição coletiva no Museum of African Art, em Belgrado, com a curadoria de Ana Knežević, Emilia Epštajn, Graça Rodrigues e Sónia Ribeiro.
Uma exposição que decorre da colaboração entre o museu e a galeria THIS IS NOT A WHITE CUBE e que reúne o trabalho de artistas angolanos de uma geração considerada icônica, nascida após a independência de Angola, em 1975, sucedendo à afirmação dos movimentos independentistas, à Guerra Colonial Portuguesa e à deposição do regime ditatorial do Estado Novo, em Portugal. Além de contar com a minha participação, reúne obras em papel, instalações, performance, pintura, fotografia, têxtil e vídeo de Alida Rodrigues, Ana Silva, Francisco Vidal, Januário Jano, Luís Damião, Nelo Teixeira, Osvaldo Ferreira, Pedro Pires e Ery Claver. É uma nova experiência, sem dúvida! Num outro território.
Paralelamente à exposição, foi desenvolvido um programa com visitas guiadas e uma mesa redonda, onde quer eu, quer o Osvaldo Ferreira, tivemos oportunidade de contactar directamente com um público muito comprometido e com uma comunidade científica verdadeiramente interessada no desenvolvimento actual da cena artística em Angola.
Foi verdadeiramente enriquecedor conhecer a colecção permanente do museu, com a qual a nossa obra foi colocada em diálogo.
F&N – Acha já ter atingido o seu patamar maior ou ainda anda à procura de mais espaço de afirmação?
CM- Enquanto viver, terei de sonhar mais e mais. É um dos sentidos da vida. Não ando a procura, mas mantenho uma expectativa de me manter em perpétua evolução, de não retroceder, nem ficar na mesma posição. Quero continuar a construir o caminho, devagar, com equilíbrio. Continuar a crescer, assim é a filosofia de uma semente! Quero continuar a participar em projectos, a partilhar o meu conhecimento e a exibir as minhas criações em diferentes países e em lugares prestigiados.
F&N- Em quantas exposições individuais e colectivas já participou?
CM- São muitas! Já deixei de contar. Fiz exposições individuais e participei em muitas colectivas em Portugal, França, Suíça, Reino Unido, Luxemburgo, Itália, Dubai, nos Estados Unidos, na África do Sul, em Macau, em Dakar, no Senegal, no Congo (RDC), em Israel, Telavive, no Zimbabwe etc… São mesmo muitas! Actualmente, conforme mencionei, marco presença na exposição “Reflectir” – Fragmentos, Fragilidades, Memórias” em exibição no Museu de Arte Africana de Belgrado. O convite surgiu da colaboração da galeria THIS IS NOT A WHITE CUBE, com o museu da Sérvia e é para mim uma nova conquista. É não só uma oportunidade para mostrar a minha obra mas igualmente de conhecer a arte contemporânea de outros territórios com os quais Angola tem uma forte afinidade histórica e intelectual. É surpreendente poder desfrutar deste país, da sua imensa cultura e da troca intelectual que através desta exposição se está a gerar.
O Museu em si é uma instituição muito peculiar, nascida em 1977, fruto da doação de coleccionadores particulares que mantiveram uma presença diplomática forte em África. Tem na sua raiz uma matriz identitária ligada ao Movimento Não Alinhado, que se afirmou contra o colonialismo. Tem uma história emocionante. Honra-me poder fazer parte dela agora, através deste novo projecto “Reflect” que a equipa curatorial vocacionou para a apresentação da arte contemporânea.
F&N –Profissionalmente, que balanço faz da tua carreira. O que ganhou ao longo destes anos?
CM- Ganhei alguns prémios, o mais recente foi atribuído na Gala Prémios da Lusofonia, em Lisboa, onde fui distinguido com o título de melhor artista plástico da Lusofonia. É um prémio com algum prestígio, que me deixou, mais uma vez, orgulhoso do meu trabalho. Em 2018 fui distinguido também com o prémio “Light of Day – Art Competition”. Trata-se de um prémio Internacional vocacionado para a Arte Plástica e que é atribuído em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Em 2018, em Luanda, através do Prémio Ensa Arte 2018, fui distinguido com o 1º Prémio na categoria de Grande prémio de Pintura. Em Julho de 2014, também através do Prémio Ensa arte, foi-me atribuído o Prémio Alliance Française e uma Menção Honrosa em Pintura. Este reconhecido prémio levou-me para Paris, em residência artística. Aproveitei não só para criar naquela cidade como para estabelecer laços com a comunidade artística. São já vários os prémios acumulados!
F&N – Os artistas angolanos têm espaço no mercado internacional?
CM- A aceitação tem sido cada vez mais positiva e a prova disso é que estamos presentes em acervos de muitos coleccionadores por esse mundo fora. Estamos activos no mercado artístico com boas cotações, colaboramos cada vez mais em projectos curatoriais em Museus, Bienais e feiras de arte. Espero que isso seja um impulso e uma motivação para as novas gerações de artistas que estão a surgir. Uma motivação para trabalhar, para fazer pesquisa, para se focar na sua própria linha criativa e para serem bem recebidos no mercado, tal como nós estamos a ser bem recebidos.
O mundo da arte gira sobre si mesmo. Os coleccionadores conhecem-se mutuamente uns aos outros, interessam-se e discorrem sobre a nossa criatividade e comentam-na, tal como se comenta um livro, um romance ou um jogo de futebol. A originalidade e autenticidade são o cerne do meio e o plágio promove constantes demissões de carreiras. É por isso importante promover a singularidade.
F&N- Qual é a avaliação que faz do mercado angolano no ramo das artes plásticas?
CM- Temos poucos coleccionadores em Angola, um número que se conta pelos dedos. Mas o mais deplorável actualmente é a falta de um Museu Nacional de Arte Contemporânea. Falta a capacidade para alavancar uma colecção de arte angolana, que possa realçar a nossa produção artística. Sindica Dokolo tentou fazê-lo, mas a concretização ficou comprometida. Temos elites com poder e capacidade para o fazer, mas falta o propósito, o sonho, a crença e a aposta. Temos de perpetuar a sua sensibilização sobre o valor e o papel da arte numa nação. Porque a arte além de ser uma relíquia e de ter a capacidade de gerar riqueza, de promover a atração turística e de promover o desenvolvimento sustentável, é o espelho de uma nação, da sua cultura e da sua identidade.
F&N– Em relação a nova geração?
CM- Tenho visto uma prosperidade criativa entre muitos deles e apraz-me a determinação de quem tem a coragem de propor ao mercado as suas criações em áreas tão diversas como pintura, escultura, fotografia, performance e instalação. Procuro incentivar sobretudo aqueles que perseguem a originalidade, pois essa sede de querer ser único é o que define realmente um artista, mais do que qualquer prémio.
Há artistas que só trabalham para se candidatar a prémios e há outros artistas a quem a arte circula nas veias e que são verdadeiramente comprometidos com a sua obra. Tenho visto novos artistas a nascer como cogumelos, cada um com um traço diferente e isso é surpreendente. Há novas linguagens e discursos e um campo muito fértil para os nossos críticos e historiadores de arte escreverem sobre estas novas propostas que cada qual traz.
F&N – Os angolanos vão, este ano, às urnas. Que mensagem deixa a respeito.
CM-O máximo que posso dizer, é incentivar o povo a ir votar e desejar que tudo decorra em harmonia. Que a verdadeira escolha e vontade do povo seja levada em consideração. Tendo em conta a distância em relação aos pontos de voto que muitas pessoas podem ter de enfrentar, creio que o governo deveria, com boa vontade e sem chantagens, disponibilizar transporte como forma de apoiar a deslocação dos cidadãos.
Não vamos fingir que a pobreza não está a assolar muitas famílias. Se um cidadão tem dinheiro para oferecer à sua família apenas uma panela de arroz, não vai certamente usar este valor para pagar um transporte de deslocação até às urnas de voto.
QUEM É CRISTIANO MANGOVO?
Nascido em Cacongo, Cabinda, Angola, Cristiano Mangovo é o terceiro de sete irmãos. Filho de um militar — hoje pastor evangélico — e de uma camponesa, morou com tios e foi criado desde os três anos na República Democrática do Congo como refugiado.
Nascido no seio de uma família com forte vocação artística, Cristiano Mangovo iniciou desde muito cedo a experimentar a arte de pintura, uma paixão que se estende até à actualidade.
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