Aos trinta e seis anos de idade, Celso Caio Mendes, o “Nagrelha”, provavelmente o músico que mais popularizou o estilo “kuduro” no país, deixou o mundo dos vivos, vítima de uma grave doença pulmonar que o afectava nos últimos anos de vida; uma vida preenchida por uma imensidão de factos muito ligados ao bairro onde nasceu, cresceu, fez-se homem e se transformou num autêntico herói. Os mais fãs não têm dúvidas: merece uma estátua do tamanho da popularidade conquistada a pulso, num ambiente de absoluta luta pela sobrevivência e dignidade humana: o “gheto”. O seu “gheto”.
Por: Carlos Miranda / Fotos: Arquivo NET
“Nagrelha” faleceu no passado dia 18 de Novembro no Hospital Dom Alexandre do Nascimento, em Luanda e, em todo o país, registou-se uma tremenda comoção generalizada; a dimensão da sua popularidade atirou para a vulgaridade alguns dos “ases” mais sonantes nomes da música angolana recente. Feliz ou infelizmente…
O momento “Nagrelha” transformou-se,pois, numa situação ímpar para reflexão profunda sobre a qualidade das nossas lideranças sociais; sobre as marcas, as influências, os exemplos deixados, as obras consumidas pela juventude. Mas depois de tudo o que se passou com a morte de Nagrelha já existe uma certeza: diferente das grandes obras poéticas transformadas em grandes “hits”, hoje, também no plano musical, é difícil separar o “trigo do joio”…
A verdade é que, para o bem e para o mal, “Nagrelha” passou a ser o ícone mais destacado do Kuduro. Quer se goste dele, ou não. Mais: passou a ser o músico mais popular do país, tal foi o impacto social dos actos de homenagem subsequentes , as exéquias e um funeral marcante para uma história de vida que deve ser estudada, ao detalhe, face ao fenómeno despertado por si em todos os extratos sociais.
…O cortejo fúnebre foi iniciado no Hospital Dom Alexandre do Nascimento, por volta das 19 horas do dia 19 de Novembro e foi visto e acompanhado em várias artérias da cidade, onde milhares de pessoas tentaram a todo o custo prestar a sua última homenagem. Um dia antes, no Estádio Nacional da Cidadela, outras centenas de fãs, colegas e amigos permaneceram horas a fio a homenagear o artista numa noite em que grande parte da cidade não dormiu, nomeadamente o distrito do Sambizanga profundamente abalado pela morte de mais um filho que transportou, de forma positiva, o seu nome até mesmo além-fronteiras.
O ambiente no Sambila era indescritível…O bairro sentiu-se, como nunca, unido na dor num ambiente pesado, muito triste. E quem previu que apenas os jovens amantes do Kuduro sentiriam o efeito da morte de “Nagrelha” enganou-se redondamente.A sua fama não escolheu idade. Nenhuma.
Eram centenas e centenas de mamãs “zungueiras”, peixeiras, mulheres que deixaram de ir aos mercados do S.Paulo, do Tunga Ngó, da Quiminha, do Arreiô – Arreiô, do B.O., dos becos e largos que deixaram os seus afazeres para despedirem-se do músico que, através da música, mudou de vida e solidarizou-se inúmeras vezes com os seus mais humildes.
Estavam ao longo das “estradas” maltratadas do subúrbio mais popular do país, centenas de jovens que, através do seu ídolo busca(ra)m a inspiração para mudar de “placas”. Buscaram em “Nagrelha” uma bússola, uma fonte para fazer o bem,compondo músicas , bastas vezes consideradas “sem nexo”, sem qualquer sentido estético ou carregadas de mensagens impróprias para as boas famílias. De berço. No final das “pautas” …toda a gente dançava ou fingia que gostava…
A grandiosidade da fama atingiu o auge horas antes do seu corpo baixar à sepultura no Cemitério de Sant’Ana. Fica retida na memória do luandense um trânsito interrompido oficialmente pelas autoridades policiais desde as primeiras horas da manhã, tal era a imensidão de gente que acorreria às artérias por onde passou o féretro de “Nagrelha” encoberto pela bandeira da República, escoltado por agentes da Ordem pública e membros afectos à Associação dos Kuduristas de Angola.Também não se tem memória que um “cidadão do povo”, “vindo do povo”, que “convivia com o povo” e que “nunca deixou cair o povo” merecesse, na hora da partida, tão significativa cobertura jornalística, nomeadamente da televisão que fez imensos “directos” antes, durante e depois de um funeral…Os sublinhados negritados entre aspas são de cidadãos anónimos…
Adão Filipe e Cabingano Manuel
DOIS DEPOIMENTOS SENTIDOS
Homens do Jornalismo, da Cultura; cidadãos que conviveram a espaços com Nagrelha, que acompanharam, desde cedo, a carreira fulgurante, bastante intensa de Celso Caio Mendes prestaram depoimentos sobre a trajectória do já aclamado “Ícone” do Kuduro, o “Estado Maior”, o homem que atingiu o “pleno da popularidade”, enfim ” aquele que se tornou uma “marca incontornável” da cultura urbana angolana.
Em entrevista à TPA, Adão Filipe considera fundamental que se reproduza a obra de Nagrelha, principalmente pelas pessoas que trabalham no segmento Kuduro.” Toda a componente positiva que ele produziu, deve ser replicada porque sempre que ele chegasse a um espectáculo tinha máximas que a gente ria, mas dava para reflectir, uma vez que estavam lá subjacentes mensagens interessantes”, afirma.
“Apreciei o Nagrelha mais pela forma irreverente como se posicionava na música e isto fez com que ele se transformasse numa marca seguida por muita gente. Quando me chegou a notícia sobre a sua morte, fiquei atónito porque estava convencido de que todo o processo da sua recuperação estava efectivado; que ele poderia sair daquela situação e continuasse a contribuir para o mundo da música”, lamenta Adão Filipe que sugere que a morte de Nagrelha deve fazer com que se possa reflectir a “arte como factor de integração social”.
“Em várias entrevistas que eu dei, em várias conversas que eu mantinha com pessoas ligadas à arte e não só… perguntava: o que seria do Nagrelha se não fosse a arte? O resultado é que estamos aqui hoje todos debruçados sobre a perda de uma figura que nos diz alguma coisa; que criou seguidores, que se tornou numa marca incontornável para a cultura urbana angolana e que ficará para a eternidade, em função daquilo que fez com a linguagem que criou, com a forma de estar, de vestir, com a sua influência, (…) para as novas gerações. Então, os momentos que eu partilhei com Nagrelha foram fundamentalmente para perceber quem era o artista… Que tipo de artistas nós estamos a criar? E achei que nós estávamos diante de um artista diferente, novo, que tinha alguma coisa para dizer e que tinha chegado à arte para ficar…”, afirma.
Adão Filipe conta que, no âmbito do projecto AJAPRAZ, há alguns anos, foi ao Cunene com Nagrelha, e ele teve uma atitude excepcional (…) diferente dos comentários que ele ouvia sobre o artista, pois ficava sempre no seu cantinho, depois de uma actuação super-excelente.
“Estive a ouvir sobre os projectos sociais com a participação dele e sempre que eu passasse no Sambizanga e via a sua enorme imagem estampada no Prédio do Livro, dava-me um prazer enormíssimo, pois Nagrelha se tinha elevado a uma figura de reconhecimento; que é daquela zona; as suas gentes se identificavam com ele; via-se como um deles”, acrescenta.
Por seu turno, Cabingano Manuel, na qualidade de sociólogo , acredita que Nagrelha atingiu o pleno em termos de popularidade “sendo ele próprio” do ponto de vista musical e pessoal. “É um jovem que nasceu no Sambizanga, que cantava aquilo que era a sua realidade sócio-cultural, mas que, acima de tudo, mantinha a sua originalidade no asfalto. Ele conseguia fazer esta ponte e com isto conseguiu também a aceitação das pessoas, até porque era uma pessoa com elevado espírito de humor, espelhado nas suas letras; as entrevistas dele causavam sempre uma alegria imensa, sem causar uma ruptura com o seu lado humanitário e filosófico. Vejamos quando ele diz que “a morte e o sono são irmãos do mesmo pai, mas um não sabe brincar”?. (…) Como é possível enquadrar um pensamento desta maneira? Portanto, ele não era apenas o que nós julgávamos que ele era. Era mais do que isso…”.
Cabingano considera que o artista tem de ter a capacidade de fazer com que as pessoas se liguem a ele, não só pelo que canta, mas também pelo que ele é do ponto de vista do exemplo, da sua originalidade. “Os artistas à dimensão do Nagrelha o mundo tem muito poucos. É só olharmos para a perda e vamos perceber o que, de facto, ele representa!”, sublinha.
Um morto, vários feridos e vandalismo
ACTOS CRIMINOSOS MANCHARAM O FUNERAL
Alguns actos de violência, vandalismo, roubos e furtos efectuados por grupos de jovens nas imediações do cemitério de Sant’Ana, onde ocorreu o funeral do malogrado Celso Caio Mendes, resultaram na morte de um adolescente de 16 anos de idade, por asfixia (terá sido pisoteado), 19 feridos, sendo 17 civis e dois agentes da polícia da Ordem Pública, bem como cinco viaturas da instituição vandalizadas, para além de dezenas de viaturas civis e estabelecimentos comerciais assaltados.
A rápida identificação e localização dos criminosos permitiu a detenção dos criminosos (18), que, segundo se soube à posteriori e em sede da instrução dos respectivos processos-crime, nenhum deles pertencia aos grupos de fãs acompanhantes do cortejo fúnebre, maioritariamente compostos por jovens amantes do estilo Kuduro.
Até às imediações do cemitério, tudo indicava que não imperasse a desordem pública, muito menos os actos violentos que mancharam o dia, pois, segundo a própria Polícia Nacional, desde que se tomou conhecimento do infausto acontecmento, exarou-se com antecedência um comunicado que ao cemitério apenas teriam acesso pessoas ligadas à família e amigos mais próximos de Nagrelha.
“Nós trabalhámos num plano que resultou de vários encontros que tivemos com grupos de trabalho criados para a realização da actividade. Mantivemos reuniões com o porta-voz da familia do falecido, com entidades governamentais e outras instituições , tais como a Casa da Cultura do Sambizanga e a Associação dos Kuduristas”, revelou o Superintendente-Chefe Lázaro Conceição, da Polícia Nacional, ao Programa “Ecos & Factos”.
“Nós queríamos garantir uma homenagem digna , sem que houvesse impedimentos. Queríamos garantir segurança, por um lado, mas também liberdade, por outro ; até porque o acesso à Cidadela foi livre, o que significa dizer que não houve intenção alguma de muscular o policiamento. Queríamos assumir um policiamento de baixa intensidade, por forma a que as pessoas pudessem, livremente, dizer “adeus” ao Nagrelha”, afirmou, acrescentando que para além dos inicialmente previstos 1500 agentes policiais no local, a corporação teve sempre de “reserva” um número considerável de homens devidamente preparado para “repor a ordem”.
Lamentando a morte do jovem, revelou igualmente que os pacientes tiveram alta imediatamente, depois de terem sido assistidos no posto médico do Comando Policial, localizado nas imediações do local dos incidentes. “Quer dizer que nós prestamos o nosso apoio a este asseguramento do funeral que, infelizmente, não correu da melhor forma, pois algumas pessoas não corresponderam aos nossos apelos; decidiram desafiar o esquema que foi acordado com as forças de segurança. Com o mínimo de danos e impacto possível, conseguimos repôr a ordem”, disse o Superintendente.
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