Quando se fala de reconfiguração ideológica (que pode ser mera utopia) no seio do MPLA, há uma questão inadiável: será que trata-se de um mero exercício retórico ou de um compromisso real com a transformação das práticas partidárias? O engenheiro António Venâncio — num comentário disponível no meu post — afirma que a mudança só será possível se o partido abraçar valores democráticos e for liderado por alguém comprometido com os seus estatutos e com o seu programa. É uma posição firme, coerente e necessária. Mas não esgota o problema, ao meu ver, naturalmente.
Concordo que não pode haver regeneração autêntica sem democracia interna, sem responsabilização dos líderes e sem funcionamento das estruturas de fiscalização. A Comissão de Ética, Disciplina e Auditoria (CDEA), por exemplo, continua refém da vontade política do líder partidário, quando deveria actuar com a independência que os estatutos preveem.
Contudo, discordo da leitura de que há, no meu discurso, qualquer tipo de fatalismo ou descrença na possibilidade de mudança. Pelo contrário, acredito profundamente na regeneração.
Mas essa regeneração não será fruto apenas de leis escritas ou reformas estruturais: ela exige também a presença de lideranças exemplares. A aprendizagem política, como bem sabe qualquer observador atento, acontece tanto pela norma, como pela imitação. Como nos lembra Nancy Fraser (2003), reformas duráveis dependem não apenas da redistribuição institucional, mas também do reconhecimento público de valores éticos nas figuras de liderança.
Identificados os membros com perfil ético e político adequado, é necessário conduzi-los a posições de destaque para que sejam vistos como referências, exemplos a seguir — não apenas por militantes, mas por toda a sociedade. A transformação só será possível se ela começar no carácter das pessoas que a conduzem.
A questão de fundo, portanto, não é apenas normativa, mas cultural. Por que razão existe a percepção de que o MPLA continua a reproduzir práticas herdadas da liderança de José Eduardo dos Santos, mesmo sob a presidência de João Lourenço?
Porque esse conjunto de práticas foi, ao longo do tempo, institucionalizado. Não necessariamente formalizado nas normas, mas naturalizado nos costumes. Como argumenta Guillermo O’Donnell (1994), em democracias delegativas, líderes operam formalmente dentro de quadros democráticos, mas perpetuam práticas autoritárias através da concentração informal do poder.
Há uma distância gritante entre os estatutos do partido e a cultura política vigente. Essa tensão exige mais do que reformas de papel: exige uma mudança de paradigma. É o que Pierre Rosanvallon (2015) define como o fosso entre a legitimidade normativa e a legitimidade prática — quando as instituições não conseguem gerar confiança porque funcionam segundo costumes paralelos às normas.
Venâncio lembra, com razão, que nunca houve sanções eficazes contra líderes ou militantes que violaram os estatutos, a Constituição ou o código de ética do partido. E pergunta: que tipo de disciplina partidária é essa que apenas se preocupa com faltas em marchas e passeatas? Uma pergunta legítima — e que precisa ser enfrentada. Mas a resposta a ela não virá apenas da mudança nos regimentos: virá da disposição colectiva de instaurar uma nova ética política, baseada na responsabilização e na transparência. Dados do Afrobarometer (2023) indicam que 74% dos angolanos consideram que os líderes políticos raramente são responsabilizados pelos seus actos, o que reforça a percepção de uma cultura de impunidade.
Outro ponto crucial é a dimensão organizativa. Um Comité Central com cerca de 700 membros — mais do que os comités centrais combinados da China, Índia e Rússia — não favorece a deliberação nem a eficácia. Ao contrário, dilui responsabilidades, cria zonas de impunidade e transforma o órgão máximo do partido numa estrutura ornamental. Segundo David Shambaugh (2008), o Comité Central do Partido Comunista Chinês tem entre 200 e 250 membros — número que permite maior agilidade deliberativa e controlo interno.
A reconfiguração ideológica, para ser efectiva, requer também uma reforma organizacional profunda, adaptada à realidade institucional angolana.
No entanto, qualquer reconfiguração será inócua se não houver uma separação clara entre os interesses do partido e os interesses de saque e corrupção. A depuração interna, o estudo sério das “ogivas” — ou núcleos programáticos e identitários do partido — é a condição prévia para qualquer viragem real. E, sobretudo, essa viragem terá de ser conduzida por figuras cuja conduta pública inspire confiança, e não por aqueles que carregam os vícios do passado com nova roupagem.
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