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Da bomba de combustível à rua: COMO UMA POLÍTICA ECONÓMICA DESENCADEOU A CRISE EM ANGOLA

Escrito por figurasnegocios

As greves e actos de vandalismo têm efeitos profundos e multidimensionais nas sociedades civis: em primeiro lugar, afectam directamente a vida quotidiana: a paragem de serviços (como transportes, saúde, educação, etc.) corta o acesso de milhões a bens e serviços essenciais, amplificando vulnerabilidades já existentes; em segundo lugar, há impacto económico imediato, que vai desde a perdas para comércio local, quebras na receita das pequenas e médias empresas, à queda na produtividade e redução da confiança de investidores: em terceiro lugar, manifestações que degeneram em vandalismo corroem o tecido social, pois aumentam a insegurança, aprofundam polarizaç ões políticas e enraízam ciclos de repreensão e resposta estatal violenta que podem normalizar a utilização da força com a resposta à contestação soc ial.

Por: Eugénio Costa Almeida*

A cidade de Luanda voltou a recordar – ainda que de forma um pouco violenta e traumática – que políticas económicas e tensões sociais não andam em compartimentos estanques. A recente vaga de greves, saques e vandalismo que explodiu depois do fim de um subsídio aos combustíveis mostrou, em poucos dias, como um choque de preços pode desmontar rotinas, corroer meios de subsistência e transformar legítimas formas de contestação em confrontos de (muito) alta intensidade. O saldo humano e social foi pesado: autoridades e reportagens internacionais citam entre dezenas de mortos, centenas de feridos e mais de mil detidos, além de elevados danos materiais e encerramento temporário de comércio em vários bairros.

Se analisar esta matéria segundo um ponto de vista académico, greves e actos de vandalismo são fenómenos distintos, mas frequentemente conectado s. A greve é uma arma laboral e política — um meio colectivo de pressão que interrompe serviço se procura forçar o diálogo (quando é possível). O vandalismo, por outro lado, estabelece-se quando a contestação perde formas organizadas e entra numa lógica de saque, destruição e ruptura do espaço público.

A literatura sobre movimentos sociais sublinha que a transição entre protesto pacífico e violência depende de factores multiplicadores: intensidade do choque (por exemplo, aumento súbito de preços), redes de mobilização informal, presença de actores oportunistas e a resposta do Estado (desligada, repressiva ou dialogante). Em contextos de fragilidade institucional e elevada pobreza urbana, essa linha de fricção é ainda mais fina.

Angola é um caso paradigmático, dado ser um país rico em petróleo, mas com profundas desigualdades e com uma larga fatia da população vulnerável a choques de preços. A decisão de cortar subsídios aos combustíveis – parte de um processo deajustamento fiscal há já alguns anos em vigor e reforçado, periodicamente, a pedido do FMI – exigia uma estratégia de compensação social que, aparentemente, não foi percebida como suficiente pela população.

Naturalmente, que o que se temia poder acontecer, aconteceu e o resultado foi a paralisação iniciada por associações de taxistas, os candongueiros, (responsáveis por grande parte do transporte urbano), seguida de bloqueios, incêndios de pneus, saques em lojas e confrontos com forças de segurança. As autoridades justificaram a reforma pelo peso dos subsídios nas contas públicas e pela pressão de credores e instituições internacionais, mas o timing e a ausência de “amortecedores” sociais precipitaram a explosão que todos pudemos verificar.

 Como respondeu o Governo? A resposta governamental teve duas frentes: segurança e narrativa. Em termos tácticos, a resposta incluiu o recurso massivo às forças policiais, além de detenções em larga escala e operações para impedir a continuidade dos saques.

Em termos de comunicação, o Executivo procurou enquadrar as acções como necessárias para preservar a segurança e justificar a retirada gradual dos subsídios por razões de orçamento e sustentabilidade. Organizações de defesa dos direitos humanos, por seu turno, criticaram o uso excessivo da força e exigiram uma investigação independente sobre mortes, detenções e eventuais excessos. Essas duas frentes – contenção securitária e legitimação técnica da reforma fiscal – mostraram prioridades claras: estabilidade imediata e credibilidade macro-económica. Será?

Isto nos leva à pergunta política essencial: o que, em última instância, interessa mais ao Governo do Presidente João Lourenço – reformas económicas “de conteúdo pobre” (isto é, medidas técnicas sem conteúdo social robusto) ou as manifestações que denunciam pobreza, desemprego e crises sociais? A resposta percepcio nada é ambivalente, mas sugestiva. A agenda oficial dá prioridade a reformas que melhorem indicadores macro-económicos e atraiam investimento; um imperativo face à dívida e às recomendações de organismos multilaterais. Simultaneamente, a resposta repressiva às manifestações indica que a preservação da ordem é um o bjectivo prioritário.

Em termos práticos, isso tem significado colocar reformas e estabilidade em primeiro lugar, muitas vezes sem um pacote suficientemente convincente de medidas compensatórias que aliviem os efeitos redistributivos sobre os mais desprotegidos. O resultado é uma governança orientada pela sustentabilidade fiscal e pelo controle da esfera pública, e menos pela estruturação de redes sociais de protecção e de um diálogo profundo com as bases sociais.

 Que lições e que políticas podem– e devem – orientar os governos para minorar os efeitos de greves e vandalismo? Um balanço académico e prático aponta para um conjunto integrado de medidas:

  • Políticas de contenção sociais temporários: transferências directas, vales de transporte ou passes sociais – como existe em Portugal, por exemplo –, e medidas focalizadas que protejam as famílias mais afectadas no momento da supressão de um subsídio social importante;
  • Diálogo preventivo: negociação com sindicatos, associações detransportadores e organizações com unitárias antes de reformas sensíveis, com calendarização clara e com pensações aferidas;
  • Reforço de serviços públicos e criação de em prego, investindo parte da poupança de corrente dos cortes de subsídios em programas de emprego local, formação profissional, melhoria e requalificação e aumento de serviços públicos (transporte colectivo, saúde primária…), com vista à redução da dependência da volatilidade que os preços de combustíveis possam gerar;
  • Reforma da polícia e respeito pelos direitos humanos: treinar forças de segurança para resposta proporcional, evitar uso excessivo da força e permitir manifestações pacíficas; responsabilizar abusos, visando o restabelecimento da confiança social;
  • Comunicação transparente e participação disponibilizando análises de impacto social e permitindo mecanismos de participação pública para legitimar e scolhas;
  • Acções anti-saque e salvaguarda de comércio local sem criminalizar o protesto legítimo, focando em operações de segurança que protejam civis e bens, enquanto se distingue entre manifestações pacíficas e crime organizado .

Estes princípios não são panaceias, mas representam um conjunto de políticas que minimizam a probabilidade de um choque económico transformar-se numa crise de ordem pública. A experiência angolana – recente e dolorosa – demonstra que cortar subsídios sem uma articulação social robusta é um convite à contestação e ao risco de escalada.

A política pública eficiente conjuga sustentabilida de macro-económica com justiça distributiva. Neste sentido, só assim se pode construir, a médio prazo, uma estabilidade legítima e resiliente.

Não esqueçamos, e devemos ter isso bem presente ou reafirmar, que em termos estruturais, nações ricas em recursos, com o Angola, enfrentam um paradoxo: políticas de ajustamento (corte de subsídios, reformas fiscais) são frequentemente promovidas por necessidade macro-económica e pela imposição de uma certa comunidade financeira internacional, mas a sua implementação sem redes de protecção social robustas gera choque imediato sobre os mais pobres.

Nos centros urbanos, onde a maioria dos trabalhadores informais depende do transporte público e do combustível para gerar rendimentos, aumentos nos preços do combustível reverberam como aumentos de tarifas, menores deslocações para trabalho e menos consumo, acelerando o empobrecimento e a mobilização social.

Além disso, quando greves são cooptadas por oportunistas ou crime organizado, o protesto social pode transformar-se em vandalismo generalizado, com perdas de longo prazo para capital local e emprego.

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