Uma crise da dívida está a fermentar nos países em desenvolvimento, especialmente em África, à medida que o aumento das taxas de juro, a inflação e a desvalorização das moedas nacionais atingem as suas economias. Até 2024, estas nações, conhecidas como “mercados emergentes”, terão de reembolsar cerca de 200 mil milhões de dólares em obrigações e outros empréstimos.
Por: *José Correia Nunes / Fotos: Arquivo F&N
Países como a Etiópia, Tunísia, Egito, Gana, Zâmbia, Angola, Quénia, Nigéria e uma dúzia de outros países que emitiram títulos de dívida em moeda estrangeira estão a ter dificuldades crescentes em cumprir o serviço da dívida, estando alguns, como a Zâmbia, já em situação de incumprimento.
De acordo com o FMI, as vulnerabilidades e os riscos da dívida continuam elevados, sendo as economias de mercado emergentes e os países de baixo rendimento particularmente afetados. Entre os primeiros, 25% correm um risco elevado e enfrentam spreads “semelhantes aos de um incumprimento” na sua dívida soberana. Entre os países de baixo rendimento, cerca de 15 por cento estão em situação de sobre-endividamento e outros 45 por cento correm um risco elevado de sobre-endividamento.
A situação é especialmente grave, porque estas nações têm pequenos mercados internos e devem recorrer a credores globais para obter dinheiro para gastar em hospitais, estradas, escolas e outros serviços vitais.
Os pagamentos da dívida da Nigéria em 2022, o equivalente a 7,5 mil milhões de dólares, ultrapassaram as suas receitas em 900 milhões de dólares. Por outras palavras, o país pediu mais empréstimos apenas para continuar a pagar o que já devia.
À medida que a Reserva Federal dos Estados Unidos e o Banco Central Europeu foram aumentando as taxas de juros para controlar a inflação, o mercado em dólares e euros, outrora efervescente para a emissão de títulos pelos países emergentes, está a secar, isolando-os de mais empréstimos e aumentando os riscos relacionados com o financiamento nos mercados financeiros internacionais.
O Quénia já declarou que irá recorrer exclusivamente aos empréstimos concessionários do Banco Mundial e outras instituições multilaterais, por falta de acesso aos mercados financeiros internacionais para financiamento.
Neste momento, os países em desenvolvimento estão a desviar os recursos necessários ao desenvolvimento para pagarem a sua dívida.
A Nigéria, o país mais populoso de África, gasta menos em cuidados de saúde em proporção do seu orçamento do que há uma década. Em Angola, milhões de crianças em idade escolar estão fora do sistema educativo. Segundo dados do Banco Mundial, Angola tem um dos índices de capital humano mais baixos do mundo.
Uma série de choques globais desencadeou a crise. Durante a pandemia de Covid-19, os países ricos imprimiram dinheiro para distribuir cheques de estímulo; os pobres tiveram de contrair empréstimos para manterem as suas economias a funcionar. As políticas de dinheiro fácil nos países desenvolvidos fizeram com que os investidores ficassem satisfeitos em emprestar dinheiro aos países emergentes.
Depois veio o aumento das taxas de juros, os custos de importação mais elevados, e a crise cambial que abalaram a economia dos países emergentes.
Para piorar ainda mais a situação, muitos países em desenvolvimento, especialmente em África, começaram a reduzir os subsídios aos combustíveis, numa política claramente pró-cíclica que acelerou a crise económica.
A redução dos subsídios aos combustíveis, numa situação em que estes países enfrentavam grandes dificuldades socio-económicas, constituiu um erro na elaboração da política económica. Ao dar prioridade ao rigor orçamental em detrimento do papel de amortecedor social que os subsídios desempenhavam, as medidas empurraram milhões de pessoas para a pobreza. A desvalorização das moedas nacionais que se seguiu apagou qualquer espaço orçamental para cobrir as despesas sociais com educação e saúde que a redução dos subsídios pudesse ter criado.
Cerca de 3,3 mil milhões de pessoas – quase metade da população mundial – vivem em países que gastam mais no pagamento da dívida do que na educação e nos cuidados de saúde, de acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento.
Há apelos crescentes para o lançamento de uma iniciativa global semelhante ao alívio da dívida lançado pela comunidade internacional no final da década de 1990 e no início da década de 2000, no âmbito da iniciativa dos Países Pobres Altamente Endividados (HIPC), para garantir que nenhum país pobre enfrente um peso da dívida incontrolável.
Mas até agora, isso não teve muito efeito. Muitos países emergentes operam num ambiente complexo marcado por um cenário de credores mais diversificado. Quando o HIPC foi lançado há mais de 20 anos, a esmagadora maioria dos credores eram países desenvolvidos membros da OCDE e do Clube de Paris. A coordenação dentro da OCDE e do Clube de Paris foi muito mais fácil em comparação com hoje, quando existem outros grandes credores oficiais, como a China, e o papel dos credores privados aumentou significativamente.
No início da pandemia de Covid, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional instaram o G20 a criar a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida -ISSD (DSSI na sigla inglesa). Criada em maio de 2020, a ISSD ajudou os países a concentrar os seus recursos no combate à pandemia e na salvaguarda das vidas e meios de subsistência de milhões de pessoas mais vulneráveis. Quarenta e oito dos 73 países elegíveis participaram na iniciativa antes de esta expirar no final de Dezembro de 2021. A iniciativa suspendeu apenas escassos 12,9 mil milhões de dólares em pagamentos do serviço da dívida devidos pelos países participantes aos seus credores, de acordo com as estimativas mais recentes.
O G20 também apelou aos credores privados para participarem na iniciativa em condições comparáveis. Lamentavelmente, apenas um credor privado participou.
Reconhecendo as limitações do ISSD, o G20 em parceria com o Clube de Paris lançou em finais de 2020 o Quadro Comum para o tratamento e reestruturação da dívida dos países em desenvolvimento, com ampla participação dos credores, incluindo o sector privado. A necessidade de tratamento da dívida e o envelope de reestruturação necessário seriam baseados numa Análise da Sustentabilidade da Dívida (ASD) do FMI e do Banco Mundial. A dívida elegível para tratamento incluiria todas as dívidas públicas e com garantia pública que tenham prazo original superior a um ano e contraídas com credores oficiais ou privados.
O Quadro Comum do G20 foi aclamado como uma grande iniciativa principalmente porque incluía a China e os credores privados. Mas as dificuldades que a Zâmbia e outros países têm tido em renovar as suas dívidas no âmbito do Quadro Comum ilustram bem as limitações do sistema.
Na realidade, não existe actualmente um quadro internacional eficaz para o tratamento e a reestruturação da dívida dos países em desenvolvimento.
DÍVIDA INTERNA: UM VULCÃO EM ERUPÇÃO – A crise da dívida não é só em relação à dívida externa. Nalguns casos, a dívida interna representa um problema muito maior.
Na década de 2010, os investidores internacionais começaram a demonstrar entusiasmo pelos títulos de países emergentes, ao ponto de comprarem títulos na moeda nacional dos países emergentes.
Os governos emitiriam obrigações nas suas próprias moedas. Muitos países em desenvolvimento estenderam o tapete vermelho aos investidores ocidentais. O investimento estrangeiro nos mercados obrigacionistas nacionais era visto como um barómetro da sofisticação e profundidade financeira. Todos procuravam rendimento sem prestar muita atenção à sustentabilidade da dívida que estava a ser acumulada.
Os 23 mil milhões de dólares em activos que os fundos de investimento europeus e norte-americanos tinham em obrigações governamentais e empresariais em moeda local em 2008 aumentaram para cerca de 160 mil milhões de dólares cinco anos mais tarde, segundo dados da Morningstar Direct.
Em 2017, cerca de 60% das obrigações nacionais de médio prazo do Gana eram detidas por investidores sediados fora do país. No Egipto, os estrangeiros detinham quase um terço da dívida em moeda local, segundo o FMI.
Em vez de usá-los para reduzir gradativamente os empréstimos em moeda estrangeira, durante a última década e meia, os governos carentes de dinheiro confiaram em títulos em moeda local para colmatar défices orçamentais em salários e outras despesas correntes, sem criar instituições suficientemente fortes para administrar essa dívida.
A dívida em moeda local é agora o maior dreno nos balanços de muitos países em desenvolvimento. Os pagamentos de juros várias vezes superiores aos que gastam em empréstimos denominados em dólares estão a consumir investimentos na saúde, na educação e noutras áreas que poderiam ajudar a fortalecer as suas economias.
Em 2022, o Gana gastou um terço do seu rendimento no pagamento de juros da dívida local, uma vez que as taxas de juro dos títulos do tesouro local a três meses subiram para 36%. Os pagamentos de juros sobre a sua dívida interna foram três vezes superiores aos pagos sobre um volume semelhante de dívida externa e mais do que o orçamentado para a educação e a saúde combinadas.
O elevado custo dos empréstimos em moeda local está a complicar as discussões sobre como proporcionar alívio da dívida a alguns dos países mais pobres do mundo. A China, que emprestou fortemente aos países em desenvolvimento, juntou-se aos detentores de títulos em dólares para pressionar os governos a reestruturarem os empréstimos internos quando estes não cumprem as dívidas externas, causando perdas acentuadas para os bancos locais e fundos de pensão que detêm a maior parte desses títulos em moeda local.
Contudo, o sistema do FMI e do Banco Mundial para detectar riscos emergentes continuou centrado na dívida em moeda estrangeira. Dos cinco indicadores que as duas instituições sediadas em Washington utilizam para avaliar se a dívida de um país de baixo rendimento é sustentável, nenhum analisa o custo dos empréstimos internos.
Com o aumento das taxas de juros, os investidores internacionais, concentrados nos lucros líquidos em moeda forte, foram mais rápidos a desfazer-se da dívida em moeda local do que das obrigações em dólares quando a Reserva Federal aumentou as taxas de juro ou o valor do dólar aumentou. Para os países com dívidas locais isto desencadeou um círculo vicioso.
À medida que os investidores vendem obrigações em moeda local, inadvertidamente deprimem ainda mais o valor da moeda local em relação ao dólar, o que, por sua vez, aumenta a inflação e o custo do serviço da dívida tanto em moeda local como em dólares. Isso cria uma situação explosiva para a economia desses países.
A QUESTÃO DO FINANCIAMENTO DO DESENVOLVIMENTO EM ÁFRICA – África precisa de mobilizar recursos financeiros consideráveis para financiar o seu desenvolvimento sustentável. A escala de necessidades é tão grande que o actual quadro de financiamento está longe de preencher a lacuna. Os anúncios feitos em Conferências internacionais sobre a ajuda ao desenvolvimento, embora importantes, não deixam de ser uma gota no oceano e a dívida pública não é de forma alguma a panaceia.
Em 2015 ficou claro na reunião das Nações Unidas sobre o financiamento para o desenvolvimento, em Adis Abeba, Etiópia, que a mobilização e a utilização eficaz do financiamento com receitas públicas constituem, de longe, a maior e mais estável fonte disponível para financiar o desenvolvimento sustentável.
As receitas públicas nacionais fazem parte do contrato social entre o governo, os cidadãos e o sector privado, através do qual os cidadãos e o sector privado pagam impostos em troca de despesas governamentais em serviços de desenvolvimento social, económico e ambiental. Os cidadãos e o sector privado estão mais interessados em pagar impostos quando sentem que estão a participar no desenvolvimento global do país e podem pedir contas ao governo. Não é por acaso que a representação parlamentar nas democracias modernas nasceu precisamente deste contrato social.
Nunca na história da economia moderna o financiamento do desenvolvimento de tantos países, como em África, esteve dependente durante tantos anos de um contexto externo, quebrando assim o contrato social entre governos e cidadãos.
Neste contexto, África necessita urgentemente de um novo paradigma de desenvolvimento para vincular o financiamento público, privado, concessional e a ajuda ao desenvolvimento a esse contrato social, a fim de aumentar o investimento e colmatar a lacuna de recursos e necessidades. A ajuda ao desenvolvimento, a dívida e outras formas de financiamento externo devem enquadrar-se neste paradigma.
Na relação intrínseca entre financiamento e desenvolvimento, a tese que defendemos é que o problema principal não é o financiamento, mas sim o tipo de desenvolvimento que o continente tem seguido desde o período da independência.
Não nos parece que o modelo de desenvolvimento seguido por África tenha produzido mudanças estruturais significativas. Actualmente, o financiamento, seja de que tipo for, apenas produz mudanças incrementais num modelo distorcido.
Precisamos de inverter a lógica e reflectir primeiro sobre o modelo de desenvolvimento que queremos alcançar. Isso não é algo que possa ser prescrito. É necessário um esforço colectivo para definir o novo paradigma de desenvolvimento que desejamos.
*Director Executivo do Portal Angola
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