Conjuntura

O MITO DA DESDOLARIZAÇÃO E A ASCENSÃO DAS MOEDAS PEQUENAS A MOEDAS-PADRÃO

Escrito por figurasnegocios

Desde que o dólar norte-americano (US dólar ou dólar) se tornou na moeda-padrão das relações internacionais – principalmente após o fim do ouro ter deixado de ser divisa-padrão – que muitos países emergentes tentam retirar ao dólar a mítica figura financeira de «única divisa de transacção financeira sustentada».

Por: Eugénio Costa Almeida*

É certo que ao longo dos anos, dos decénios, várias moedas foram e têm sido usadas como divisas em transacções comerciais e financeiras, em especial as que são por via bancária – a mais usada: recordemos, a Libra (britânica), o Yen (japonês), o Franco Suíço (helvético) ou, mais recentemente, o Euro (União Europeia/UE). Na realidade, estas são as únicas que acompanham o dólar, em termos de operações comerciais e financeiras internacionais, ainda que não devendo representar mais que uns 30% a 35% destas operações, principalmente, nas movimentações bancárias.

Num período em que fui funcionário bancário, na área internacional, em especial, nos créditos documentários, era evidente que a divisa-padrão operacional era o dólar, seguido, a longa distância, do Euro. Eram, e ainda o são, raras as operações em outras divisas, mesmo em transacções com países onde essas divisas eram maioritárias, ou mesmo as que eram entre a UE e outros estados não europeus comunitários e, ou, instituições financeiras internacionais, a divisa usada tem sido o dólar.

É evidente que a economia global está sofrendo cíclicas transformações, em particular, nos últimos dois decénios, em que o dólar mostra ter menos força que antes A moeda norte-americana passou de incontestável – e até de moeda-base do petrodólar – a ser contestada a cada novo ciclo, decorrente de novas potências emergentes, como Brasil, Rússia, Índia e China; mas, também, de recentes críticas no seio da OPEP, no Oriente Médio e na Venezuela. Um nome emergiu com estas crises e contestações: “desdolarização” (Uebel & Sandi, 2019).

Apesar de, nos BRICS, o Brasil ser quem apresenta um maior PIB (cerca de 2,9 bio USD) e PIB/per-capita (20289 USD), é a China quem mais se tem desenvolvido e se afirmado como potência económica e mais tem procurado projectar a sua moeda. Só que a China sabe que não pode desenvolver uma política monetária autónoma porque parte da sua projecção financeira internacional está assente nos títulos de Tesouro norte-americano e nos dólares norte-americanos.

É o pragmatismo chinês em toda a sua amplitude; critica a política externa de Washington DC, elevando a sua ancestral orientação de “não-envolvimento” nas políticas das “grandes potências – o não alinhamento – no que é “adorada” pelos pequenos países e pelos países emergentes, mas mantém elevado o seu interesse financeiro internacional.

Nem com a criação dos BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China, acrónimo criado em 2001 pela pena do analista da Goldman Sachs, Roopa Purushothaman (O’ Neill, 2001); mais tarde, em Junho de 2009, mas realmente reconhecida em 2011 (Meyer & Pronina, 2011), com a entrada da África do Sul (South Africa), cunhado como BRICS – nem a China deixou de usar, internamente, o dólar como referência nas operações financeiras e comerciais. Nem tão-pouco a África do Sul o fez ou o parece ter ponderado.

Todavia, houve um período que a China chegou a permitir que algumas operações financeiras e comerciais pudessem, caso os países o desejassem, ser efectuadas em renminbi – também reconhecido, ainda que de forma incorrecta, não por ser moeda (esta, é o renminbi) mas unidade de conta, por “yuan”. Mas, como se costuma a dizer, não foi chão que fez emergir frutos consistentes.

A recente crise político-militar da Ucrânia, invadida e parte ocupada pela Rússia – um dos BRICS –, aliançado a uma efectiva disfuncionalidade de alianças entre russos e alguns parceiros do BRICS e aliado à ascensão de Lula da Silva à presidência do Brasil com uma certa propensão em, não só não criticar a invasão e anexação de parte o território ucraniano – deve-se notar, porém, que a atitude de Lula face a este conflito é, de certa forma, continuação à que teve Bolsonaro –, ao contrário dos chineses que defendem a integridade territorial dos países à sua independência – e têm-no sublinhado, apesar de não acolherem as sanções que foram impostas à Rússia, tal como o não o fizeram os restantes membros do BRICS –, junta-se que Lula, defende a “libertação” dos BRICS da moeda e das políticas financeiras norte-americanas.

E se a isto juntarmos a criação do Banco dos BRICS, criado, em Ceará, Brasil, em Julho de 2014 – paradoxalmente denomina-se New Development Bank (NDB – em português, Banco de Desenvolvimento do BRICS) – que ganhou, agora, um forte impulso com a eleição da antiga presidente brasileira Dilma Rousseff, como presidente do NDB, cuja finalidade seria o uso das moedas de cada um dos Estados-membros como divisa operacional, mas que, na realidade, isso nunca se verificou.

Como recorda Castelli, uma moeda para ser aceite, ou acolhida, como moeda financeira padrão ou global, precisa de estar baseada numa economia de tamanho e importância que permita essa moeda ser utilizada como reserva de valor mundial e fonte de liquidez internacional dos mercados financeiros (Castelli, 2017, apud Castilho, 2022: 27). É o caso do dólar.

E como se sabe, nenhuma das moedas dos BRICS tem reconhecimento nem capacidade de projecção internacional ou os seus países, querem deixar o dólar como referência de operações internacionais. Em África, o maior produtor mundial de petróleo, a Nigéria – que nem quer seguir as recomendações da OPEP+ – só transacciona em dólares. A próxima reunião do Afreximbank – a 30ª reunião anual, em Accra, Gana – não comtempla no seu programa alguma eventual discussão sobre mudança ou questiona o uso do dólar como moeda-padrão.

O dólar é a reserva monetária da grande maioria dos países, em particular, dos países exportadores. Todos podem, e será natural essa vontade, fazer da sua moeda um veículo de ligação transaccional, desde que aceite. Mas querer acabar com o dólar como moeda-padrão nas transacções internacionais, mais que um mito, é uma absurda utopia.

Na realidade, o #fim do dólar” nunca esteve em cima da mesa da maioria, ou da quase totalidade dos países, sejam do BRICS ou de outras organizações financeiras ou económicas, apesar das sucessivas ameaças nesse sentido. Acresce, que a maioria – por razões de reestruturação das suas dívidas externas e da estruturação dos seus sistemas financeiros internos – é assessorada pelo FMI, cuja moeda-padrão continua a ser o dólar, ainda que pondere vir criar uma moeda digital, a “Unicoin” (Malar, 2023=, mas para competir com os bitcoins…

Talvez daqui a uns decénios quando a China e outros Estados emergentes consigam criar alicerces económicos e financeiros suficientes para verem as suas moedas como moedas-padrão. Até lá, recordando Castelli, e a pandemia do COVID-19 o mostrou, tudo o resto é mito. Salvo se todos usarem as moedas digitais (Siminski, 2022), mas…

REFERÊNCIAS:

  • “Brasil resgata fórum do Atlântico Sul com países vizinhos e africanos”; in: Hora do Povo (online), 11 de abril de 2023; URL: https://horadopovo.com.br/brasil-resgata-forum-do-atlantico-sul-com-paises-vizinhos-e-africanos/
  • “Lula destaca viés social do Banco do Brics (NDB) e critica FMI”; in: Portugal Digital online, 13 DE ABRIL DE 2023; URL: https://portugaldigital.com.br/lula-destaca-vies-social-do-banco-do-brics-ndb-e-critica-fmi/
  • Camurça, Lucas C.R.O. (2022). Desafios do Yuan chinês para tornar-se padrão monetário internacional; (Dissertação para obtenção do grau de bacharel em Ciências Econômicas, pela Faculdade de Económia, Administração, Atuária e Contabilidade da UFC). Fortaleza, Universidade Federal do Ceará.
  • Corrêa, Fábio (2023). “Yuan está longe de ser uma divisa internacional”; in DW online, 14/04/2023; URL: https://www.dw.com/pt-br/yuan-est%C3%A1-longe-de-ser-uma-divisa-internacional/a-65331061
  • Malar, J.P. (2023). Unicoin: projeto de ‘moeda digital global’ levanta suspeitas; in: Exame (online), 17 de abril de 2023, 16h25 – 17h01; URL: https://exame.com/future-of-money/unicoin-projeto-moeda-digital-global-suspeitas/,
  • Meyer, Henry & Lyubov Pronina (2011). BRICS Gain Global Influence as South Africa Joins, Medvedev Says; in: Bloomberg, 12 de abril de 2011; 19:35 WEST; URL: https://www.bloomberg.com/news/articles/2011-04-12/brics-gain-global-influence-as-south-africa-joins-russia-s-medvedev-says
  • O’ Neill, Jim (2001). Building Better Global Economic BRICs; in: Goldman Sachs Global Investment Research, Nov 2001 -via Internet Archive Wayback Machine; URL: https://www.goldmansachs.com/insights/archive/building-better.html
  • Siminski, J.L. (2022). Moeda digital e o futuro do poder financeiro do dólar. Porto Alegre. Faculdade de Ciências Econômicas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Maio de 2022.
  • Uebel, Roberto & Glória Sandi (2029). Desdolarização e Geopolítica: cenários geoeconômicos do século 21; in: Diálogos Internacionais, vol.6, n.63, ago.2019; URL: https://www.researchgate.net/publication/338196988_Desdolarizacao_e_Geopolitica_cenarios_geoeconomicos_do_seculo_21.
*Investigador Integrado do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL (CEI-IUL) e Investigador-Associado do CINAMIL e Pós-Doutorado da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto**
** Todos os textos por mim escritos só me responsabilizam a mim e não às entidades a que estou agregado.

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