Os militares vão mesmo respeitar o compromisso de praticar a integridade moral, eliminar djihadistas e devolver o poder aos civis?
Texto Manuel Muanza
Fotos Arquivo FN
Numa espécie de conferência nacional, a classe política, a sociedade civil e a junta militar inscreveram a ética e integridade moral como valores para guiar a gestão do país e unir os cidadãos. Não terão apenas caucionado a instalação de um regime militar?
Na imprensa, articulistas não se dizem convencidos pelas boas intenções dos militares. Questiona-se, por exemplo, a longa transição de três anos a consagrar ao combate contra os djihadistas e a corrupção.
Para vencer os grupos aliados à Al-Qaida, o tenente-coronel golpista, Paul-Henri Sandaogo Damiba, está condenado a modernizar as forças armadas e a combater a corrpução no país.
Para já, Damiba lançou uma campanha de auditoria às instituições públicas a fim de verificar o exercício de boas práticas de gestão. Diz não haver caça às bruxas, mas promete levar os prevaricadores à justiça.
Ideais da transição: nada de novo
Um articulista burkinabe do Le pays desvaloriza o teor das intenções formuladas pela conferência patrocinada pela junta militar. Para o jornal burkinabe, “não há nada de novo nisso. É já conhecido de todo. Trata-se de valores praticados de há séculos e milénios nas sociedades. Aliás, tais valores estão no evangelho dos cristãos, no Coran dos muçulmanos, no livro dos budistas e na sabedoria dos antepassados”.
No contexto de um país como Burkina Fasso, os postulados da conferência “serão difíceis de materializar e vivenciar de facto, apesar da simplicidade na sua formulação”, argumenta Le Pays.
Para justificar a incredulidade, o articulista aponta atitudes assumidas pelos gestores públicos no país, as quais contrariam os fins da governação: “Como a ética não enriquece ninguém imediatamente, cá entre nós, deixamos cair a ética e governamos focados nos negócios. E como a realização pessoal exige muito de cada um, então preferimos o relaxamento, o deixa-andar, a desordem, a indisciplina e a falta de civismo”.
Geralmente crítico em relação aos fenómenos, Le Pays questiona o contexto em que o texto saído da conferência invoca os ideais dos nacionalistas, os quais tinham sido postos em prática “na era do presidente Sangoulé Lamizana (tenente-coronel, 1966-1980) e, particularmente, durante a revolução sob a presidência de Thomas Sankara (capitão, 1983-1987)”.
A alusão a Thomas Sankara não se fez em vão no Le Pays, pois, como se sabe, Sankara governou sob a bandeira da honestidade como valor primário, tendo eliminado a anterior designação do país (Alto Volta) para a combinar com a ideia de “terra de gente íntegra” ou “Burkina Fasso” em (tradução) línguas locais mooré e dioula. O seu consulado saldou-se em avanços reconhecidos nos domínios da educação, saúde, saneamento básico e protecção da família e da mulher. Quanto a Sangoulé Lamizana, embora tenha dirigido a país como militar, reduziu os poderes dos militares e fomentou o multipartidarismo sob uma constituição considerada democrática.
O golpe de estado de Janeiro último sugere o regresso a um regime militar. A nomeação de um civil para o cargo de primeiro-ministro, Paul-Henri Sandaogo Damiba, e a realização da conferência para o consenso acerca dos valores a cultivar para governar na transição terão tido por finalidade acalmar a sociedade. Um jornal burkinabe, por exemplo, considerou a nomeação como sendo o “relançar de homens íntegros do país”, alusão às provas de boa gestão de Sandaogo, também economista e professor, em relação a projectos de desenvolvimento.
Damiba lançou uma campanha de audição às contas de 140 instituições públicas, incluindo as forças armadas e de segurança nacional, com a finalidade de verificar se houve ou não o exercício de boas práticas na gestão. Trata-se apenas de uma primeira etapa, segundo informou à imprensa local o inspector-geral do Estado, Philippe Neri Kouthon.
No dizer de Kouthon, está fora de questão uma caça às bruxas. Justificou ser um processo de identificação dos disfuncionamentos e de elaboração de normas para boas práticas na gestão das instituições públicas. Contudo, alertou para a necessidade de levar à justiça os responsáveis pelas irregularidades consideradas de monta.
Contudo, um gesto como o da auditoria e outras intenções parecem estar longe de convencer os críticos da situação da intenção da junta militar: o chefe da junta (Presidente da transição) e os 25 membros do governo não serão eleitos, mesmo nas municipais ao fim do mandato de transição.
Seja como for, três anos no poder é um período susceptível de favorecer mudanças do contexto, podendo ditar outros posicionamentos dos actores em presença. “Não será fácil”, desabafou à imprensa local Eddie Komboigo, um dos líderes políticos mais referenciados.
Contra djihadistas e corrupção
Embora considerem “consensual” o entendimento havido com a junta, a nosso ver, os líderes políticos e animadores da sociedade civil militares tinham quase nenhuma alternativa perante os factos. O primeiro tem a ver com a crescente instabilidade no país fustigado pelas incursões dos grupos djihadistas. Restabelecer a segurança no território exige um comando militar à altura. A presença na conferência de pessoas deslocadas de várias zonas por causa dos ataques djihadistas procurou alargar a garantia de segurança futura dada pela junta. O segundo diz respeito ao estarem a dialogar por iniciativa das forças armadas, porquanto as armas em punho condicionam sempre decisões, visto o contexto do país.
Em relação à instabilidade, convém lembrar o cenário do golpe contra Roch Marc Christian Kaboré (primeiro chefe de estado civil e eleito [2015-2022], depois de oito golpes a contar da data da independência em 1960). Com o tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba à cabeça, a chefia das forças armadas acusava-o de incapacidade de liderança política na luta para eliminar os grupos djihadistas, a qual estaria, também, a ser prejudicada pela corrupção.
Em face das acusações, Kaboré tentou uma solução palhativa, procedendo à remodelação do governo em Dezembro de 2021. Com dez dos 26 titulares, dez integravam pela primeira vez o gabinete. Apelou à coesão e firmeza contra o djihadismo aos novos governantes. A mensagem indirecta aos militares estava patente: Kabaoré parecia atribuir a letargia aos seus coadjutores contra djihadistas ligados à Al-Qaida: pelo menos dois mil (2.000) mortos e 1,4 milhões de deslocados desde 2015.
No ocidente europeu, a imprensa veicula a ideia de não surpresa em relação ao golpe de estado perpetrado por militares, levantando a tese da insustentabilidade da gestão do comando das forças armadas. Tal estado de coisas terá sido alimentado pela morte em combate de 54 soldados por não terem recebi o reforço solicitado logo no começo de um ataque djihadista em Novembro de 2021, na localidade de Inata.
Africa Intelligence, por exemplo, chegou a publicar uma análise a tentar convencer os leitores sobre os pretensos preparativos para o golpe. “Como Paris se preparava para o golpe?”, titulava a publicação, enquanto o canal televisivo France 24 aludia ao facto de o presidente deposto desconfiar das intenções da operação Barkhane (missão militar francesa no Sahel), tendo-se oposto, por tal razão, a uma significativa presença militar francesa em Burkina Faso. Esses elementos de análise do problema tendem a construir a tese de conluio, envolvendo, supostamente, a França no apoio ao golpe. Procura-se, sobretudo, explorar a relação do tenente-coronel golpista à escola francesa: Paul-Henri Sandaogo Damiba, 41 anos, obteve formação militar de Paris.
O virar de costas de Kabaoré à ajuda militar francesa afastou a possibilidade de o Burkina Faso obter apoio para a reforma das forças armadas. Introduzir este elemento na avaliação do problema actual no Burkina Faso pode indiciar a possibilidade do tenente-coronel golpista, Paul-Henri Sandaogo Damiba, receber apoio externo para a modernização dos ramos das forças armadas, actualizar o equipamento e o treinamento das unidades militares especializados para enfrentar os djihadistas. É, também, provável deduzir-se, por esta visão, o tempo necessário para a concretização de uma série de tarefas conducentes à reestruturação dos órgãos de comando das tropas, formação em função das novas tecnologias a empregar no combate. A junta terá criado condições para convencer políticos e líderes civis a caucionarem um período de transição de três anos (36 meses) com o propósito de refundar as forças armadas otendo ao mesmo tempo apoio de um primeiro-ministro não corrupto? A prática dará respostas à pergunta.
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