Economia & Negócios

Indústria do desenvolvimento: O EMBUSTE CONTINUADO

Escrito por figurasnegocios

INDÚSTRIA DO DESENVOLVIMENTO – Desde há muitos anos que trazemos, recorrentemente, uma preocupação, o que nos leva, mais uma vez, a partilhá-la: a “cooperação para o desenvolvimento” deu lugar a toda uma “indústria do desenvolvimento”, cujos principais beneficiários são os países já desenvolvidos. Nos tempos que correm é mais uma vez oportuno aprofundarmos um pouco mais esta ideia, embora uma referência pormenorizada e quantificada exigisse estudos adicionais.

Por: Édio Martins / Foto: Arquivo F&N

Para maior facilidade de exposição podemos segmentar as referências a esta promissora indústria, embora seja importante não se perder de vis- ta que todos os aspectos que referiremos de seguida estão interligados.

Em primeiro lugar, a “cooperação para o desenvolvimento” fez com que tivessem sido constituídos muitos organismos “vocacionadas” para a sua concretização. As instituições de Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Bancos de Desenvolvimento Regionais), embora visando também outros objectivos, dedicam muita atenção à cooperação. A ONU tem diversas instituições multilaterais que têm na cooperação a exclusividade ou uma parte significativa das suas actividades: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Programa Alimentar Mundial (PAM), Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (CNUCED), Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), etc. São aproximadamente meia centena de instituições. O Comité de Ajuda ao Desenvolvimento da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) é outra instituição relevante para estes propósitos. Depois quase todas as integrações regionais (a começar pela União Europeia) têm as suas estruturas especificamente encarregues da cooperação, o mesmo acontecendo com quase todos os países desenvolvidos. Acrescentemos ainda estruturas diversas de coordenação de programas e projectos. Todas estas instituições estão espalhados por todo o mundo, mas as suas sedes estão essencialmente nos países já desenvolvidos.

Em segundo lugar, existem as ONGDs (Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento). São dezenas de milhar. Orientadas pelas mais diversas preocupações, actuando em diferentes espaços geográficos. O seu prestígio institucional e os fundos de que são frequentemente portadoras dá-lhes uma força de actuação junto dos países subdesenvolvidos, umas vezes caldeada pelo bom senso, outras vezes apropriando-se de algum do espaço de soberania daqueles.

Em terceiro lugar, todas estas organizações geram, ao funcionar, impactos em cadeia sobre muitas outras actividades. São as empresas de transporte, as empresas de consultadoria e as universidades, são as instituições privadas, financeiras ou industriais, envolvidas nestes processos, são todos os ramos de actividade que estão ligados, directa ou indirectamente ao normal exercício de actividades dos sectores dos serviços, da saúde, da educação, etc.

Uma parte dessa actividade realiza-se nos países que são objecto de intervenção. Diga se, a título de exemplo, que no Directório das Organizações de Desenvolvimento há, para 2017, 18.359 instituições referenciadas em África, em 57 países. É o continente com maior número de instituições, representando 28% das instituições inventariadas. Por isso mesmo os espaços de vivência dos cooperantes ou de realização de eventos são zonas urbanas de intenso crescimento das actividades económicas, dominantemente controladas por cadeias de hotelaria e restauração multinacionais.

Em quarto lugar, é importante ter em conta que várias actividades de cooperação mesmo quando concretizadas em territórios em vias de desenvolvimento acabam por beneficiar essencialmente as economias desenvolvidas, como recorda NYAMBAL (NYAMBAL, Eugène. 2006. Créer la Propérité en Afrique. Paris: Harmattan), quando justifica algumas das razões da ineficácia da cooperação como processo:

Uma análise detalhada dos fluxos de ajuda bilateral e multilateral mostra que os países industrializados são os primeiros beneficiários da ajuda que adjudicam aos países pobres. Tomemos como exemplo um projecto de assistência técnica do Banco Mundial da ordem de 12 milhões de dólares americanos que devem financiar um programa de privatizações. Este empréstimo servirá para financiar despesas dos consultores e bancos comerciais estrangeiros no montante de 10,4 milhões de dólares US e a compra de material informático e de escritório de 500.000 dólares US. Estas despesas serão efectuadas nos países avançados. O restante, nomeadamente as despesas de funcionamento do comité de privatizações e despesas diversas será gasto no país que empresta. (…)

Este esquema também se verifica nos empréstimos bilaterais em que o essencial do dinheiro regressa aos países doadores, pela via do pagamento dos salários dos peritos e pela compra de mercadorias às empresas desses países. Por conseguinte, disponibilizado o crédito, os países beneficiários a quem compete a gestão do projecto, isto é, quem tem os encargos com as despesas correntes e de manutenção (…) recebem muito pouca liquidez. Um projecto de ajuda ao desenvolvimento gera um retorno para os países doadores, transferências financeiras mais importantes que o montante da própria ajuda. (…)

Concentradas na rentabilidade da sua parte do mercados certas ONG humanitárias tornaram-se verdadeiras empresas, actuando mais em seu próprio beneficiário que em benefício dos seus anunciados beneficiários. As suas despesas de funcionamento explodiram durante os últimos anos, a tal ponto que os salários das ONG concorrem por vezes com o sector privado. Perante a ausência de mecanismos rigorosos de avaliação das suas acções, algumas limitam-se cada vez mais a mandarem representantes para «colocarem a bandeira» e para justificarem os seus acessos aos fundos, perpetuando-se de forma similar aos organismos públicos descritos pela sua ineficácia.

Outras situações de benefício às economias dos países desenvolvidos são bem mais cínicas, igualmente realistas, a propósito da perda dos valores.

As hipocrisias movidas por interesses do mundo de hoje são infelizmente demasiado comuns e muitas vezes inumanas por demasiado cruas. Não temos nós assistido, como pretensa resposta ao terrorismo condenável, ao menosprezo da via político-diplomática e, em espírito de retaliação, não temos assistido ao desencadear de ataques bélicos que devastam e deixam na miséria populações extensas, indefesas e inocentes, fazendo-se-lhe seguir depois da devastação ajuda humanitária? Destrói-se, estropia-se, mata-se antes… enviam-se alimentos e medicamentos depois (STIGLITZ, Joseph E. 2004. Globalização, A Grande Desilusão. Lisboa: Terramar).

Ganham as indústrias de armamento e ganham as indústrias alimentares e de medicamentos. Como diz o ditado “matam-se dois coelhos de uma cajadada”.

Enfim, o «desenvolvimento-processo» dá efectivamente lugar a processo de crescimento económico, mas nos países que o controlam e promovem, nos países já desenvolvidos, onde gerou valor acrescentado.

África foi particularmente maltratada nesta dinâmica.

Desmontar/Repensar conceitos e práticas do desenvolvimento

Provavelmente é ao nível do «desenvolvimento-utopia» que é mais importante a acção dos académicos que têm uma leitura heterodoxa do “desenvolvimento” e que se situam nos países desenvolvidos. Recolocando a caracterização do subdesenvolvimento na estrutura da sociedade dos próprios países, ou conjunto de países; enfatizando a decomposição do conceito de “desenvolvimento” em subconceitos, como faz MILANDO (MILANDO, João. 2005. Cooperação sem Desenvolvimento. Lisboa: ICS), demonstrando as rupturas – essenciais e estruturais – entre “processo” e “resultado”; desmontando a terminologia diplomática e revelando a nudez crua do agravamento da situação em África.

Impedindo que se encare o que é feito como a única actuação viável no quadro de uma globalização que é etiquetada de inevitável; mostrando a grande diversidade de caminhos alternativos existentes; promovendo uma pedagogia esclarecedora e construtiva junto dos quadros envolvidos nestes processos e dos cidadãos em geral, estamos a desmontar o conceito ortodoxo, institucionalmente estabelecido, de «desenvolvimento-utopia».

As adjectivações do conceito de desenvolvimento que referimos a propósito do «desenvolvimento-processo» assumem agora novos significados.

O desenvolvimento é integrado porque é desenvolvimento. Sem essa integração não seria desenvolvimento. A falta de integração está muito frequentemente associada à desarticulação, à segmentação desarticulada. Integração entre sectores de actividade, integração entre “cooperação” e práticas económicas e políticas endógenas, integração das vertentes económicas, sociais, políticas, culturais e outras. A parte exige a consideração do todo e este é a articulação das partes.

O desenvolvimento é humano na medida em que garanta o bem-estar das pessoas de uma forma continuada, que o bem-estar de umas não ponha em causa o bem-estar das outras. Esse bem-estar, por sua vez, para ser desenvolvimento tem de estar associado à interdependência dos sectores de actividade, à combinação dos direitos dos cidadãos com a produção dos serviços, a uma repartição do rendimento que não fira os direitos.

A adjectivação do desenvolvimento de social parece irrelevante se associado à “liberdade de escolha”. Esta é frequentemente entendida como uma abertura total ao mercado mundial, o que pode significar um enfraquecimento da matriz interindustrial. Que essa liberdade de escolha seja assumida como um objectivo a atingir pode fazer sentido, mas não pode ser orientadora das políticas económicas e sociais em fases de ruptura com o subdesenvolvimento.

O desenvolvimento pode ser participativo, mas este reforço da cidadania só surge directamente relacionado com o de desenvolvimento quando a participação está associada ao adensamento da matriz interindustrial. Em muitas outras situações a participação não está directamente relacionada com o desenvolvimento, embora possa influenciá-lo no longo prazo ao reforçar valores que são fundamentais para a iniciativa empresarial49.

Todo o desenvolvimento é desenvolvimento local porque a acessibilidade aos bens é componente indispensável do bem-estar. As formas de acessibilidade têm-se alterado profundamente e com elas o próprio conceito e as práticas políticas têm de ser reanalisadas, mas continuam a ter significado. O desenvolvimento como articulação dá sentido mais rigoroso a esta acessibilidade espacial: exige articulação entre a produção ou importação, por um lado, e o armazenamento, conservação, transporte, e comércio, por outro, sendo estes sectores que garantem a efectiva acessibilidade.

Também o conceito de desenvolvimento sustentável exige alguns ajustamentos. Em primeiro lugar, as propostas de decrescimento (que só faz sentido em relação aos países desenvolvidos) nada têm a ver com a resolução do subdesenvolvimento. Teriam enquanto se medisse o subdesenvolvimento como um atraso no acesso ao desenvolvimento (a diferença entre desenvolvidos e subdesenvolvidos tanto pode diminuir por decrescimento dos primeiros como por crescimento dos segundos), mas enquanto articulação e adensamento da malha económica é irrelevante. Em segundo lugar continua a fazer todo o sentido enquanto nova concepção do económico e da articulação com a natureza, enquanto solidariedade intergeracional e enquanto articulação entre o económico e o ecológico. Essa articulação é sempre entre actividades económicas e ambiente. Uma articulação que quando possível reforçará o combate à desarticulação e ao subdesenvolvimento.

Uma economia subdesenvolvida (“em vias de desenvolvimento” na terminologia oficial) não é uma economia atrasada. Ela pode ser modernizada e continuar subdesenvolvida. O elemento caracterizador desse subdesenvolvimento é a segmentação desarticulada. Uma sociedade subdesenvolvida é a expressão dessa desarticulação, assumindo importância crucial os fenómenos económicos.

A desarticulação analisa-se através da observação da própria economia e sociedade desarticulada. A mundialização é um processo descontinuamente em expansão e todas as economias estão mais ou menos abertas às outras economias, mas a desarticulação é intrínseca, é um resultado historicamente produzido e reproduzido numa sociedade concreta. As comparações entre países podem ser úteis, mas não detectam nem medem o subdesenvolvimento.

Essa desarticulação manifesta-se de forma essencial na baixa densidade da matriz interindustrial. Aí se encontra o facto de frequentemente o subdesenvolvimento gerar subdesenvolvimento (a desarticulação agrava-se assim com a articulação intensifica-se), de “os impactos” de desenvolvimento desencadeados por processos internos ou externos não se auto-sustentarem, de o «desenvolvimento-processo» ser ineficaz ou até contraproducente.

Recolocada a explicação do subdesenvolvimento no interior deste, abrem-se perspectivas diferentes para entender as políticas de desenvolvimento, para reestruturar, na medida das possibilidades abertas pela luta política, a cooperação para o desenvolvimento.

Que fazer?

Como diz RIST (RIST, Gilbert. 1996. Le Développement. Histoire d’une Croyance Occi- dentale. 1 ed. Paris: Presses de Sciences Po. Original edition, 1), expressando uma vontade sentida por muitos, “não se pode ficar de braços cruzados perante a miséria do mundo” e somos sistematicamente tentados a formular a pergunta “que fazer?” e a dar uma resposta. Poderemos mesmo dizer que no ponto anterior já começamos a entrar nesse percurso.

Assim sendo há que reter duas precauções, uma genérica relativa ao pragmatismo, outra específica dos assuntos que estamos a tratar.

A) O muito que há a modificar não exige um pragmatismo? Não se espera do economista, mesmo sendo heterodoxo, que tenha engenho e arte para encontrar soluções? Não vale a acção mais que mil palavras?

Poderíamos simplesmente responder que de acções bem-intencionadas, sem a bússola do estudo científico do que não queremos e o sonho do que pretendemos, está o inferno cheio.

Poderíamos apenas dizer que para o economista heterodoxo não basta começar a história com “era uma vez” ou “vamos supor que…”, como muitas anedotas sobre os economistas, que ouvimos em África. Não basta porque o critério da verdade é a adequação à realidade – e não a coerência interna ou a aceitação pela comunidade científica – e a Economia não é apenas a ciência dos meios escassos, mas também a ciência dos objectivos que se atingem. Objectivos inseparáveis da política e da ética.

Poderíamos laconicamente recordar a pujança de muitas filosofias do não desde a Grécia clássica até períodos muito recentes. Preferimos começar por recordar a posição de alguns autores que lembram que aquisição de cidadania teórica não significa que se assista à constituição de paradigmas alternativos, mas tão só à definição de contornos de um referencial teórico capaz de manter com a análise concreta de situações concretas a dialéctica necessária entre objecto teórico e objecto real, tarefa que o primado da vulgata interrompeu ou, reconhecendo cientificamente os sentimentos como partes integrantes da razão e o papel do “sonho” no racionalismo, aceitar a leitura do físico que literariamente se designava por Gedeão (poeta)

“Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer…”

O pragmatismo gera alçapões integradores no sistema. Num contexto imutável da estrutura, o “não” transforma-se frequentemente em “o mal o menos” – o que tomado à letra não deixa de ser interessante –, em “talvez” ou em “a cavalo dado não se olha ao dente”. É necessário intervir quando necessário, corporizar a estratégia em cada momento, mas tendo em atenção que na Economia e na Política Económica o pragmatismo é frequentemente uma das facetas da ortodoxia.

Atendendo a todos estes aspectos e porque este é um artigo e, como tal, limitadamente científico, ficamo-nos pelo “não”.

Enquanto cientistas e académicos, postura em que aqui nos colocamos, consideramos que a nossa função é científica, crítica e pedagógica, como anteriormente referimos. Não temos uma estratégia para a construção de uma alternativa relação entre os homens, das relações de vizinhança às relações internacionais, nem temos uma data para “vender na feira da ladra” as explorações e as desigualdades e substituí-las por uma sociedade diferente, emergindo quão iceberg da utopia. Quando muito possuímos a capacidade de dizer não, sabemos, dizemos e ensinamos por que dizemos não, conhecimento objectivo, conhecemos algumas tácticas e atalhos, mas ainda não temos o mapa do percurso. Não podemos confiar que descobrimos o caminho, caminhando. Ele é labiríntico.

B) Podemos alterar alguns aspectos das práticas políticas do desenvolvimento e devemos fazê lo. Contudo uma alteração radical da “cooperação” e do “desenvolvimento” passa inevitavelmente pelo fim da globalização, pela alteração significativa da correlação de forças à escala mundial.

Entre o individualismo de Zaratrusta (Nietzsche) e o colectivismo do operário (Marx) continuamos a considerar que este está mais próximo da realidade. A transformação da “cooperação para o desenvolvimento” tem de ser o resultado de uma acção colectiva, económica, social e política.

Enquanto académico, parte do cidadão, só poderemos contribuir para uma prática científica que auxilie, ou suporte, a prática política.

Também não serão os académicos que têm de dar lições seja a quem for.

“Deixem os africanos apropriarem-se do seu futuro”. É este o apelo de Mahamet Annadif. É um apelo legítimo, realista e operacional. Lutemos por isso!

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