Conjuntura

Crises político-militares no Sahel: CAUSAS, ACTORES EXTERNOS E CAMINHOS PARA A ESTABILIDADE

Escrito por figurasnegocios

Por: Eugénio Costa Almeida*

Pequena introdução, ou panorama e elementos comuns das crises militarizadas africanas

Desde cerca de 2020, vários países do Sahel e da cintura ocidental da África vêm experimentando uma sequência de Coup d’Ètats (Golpes de Estado), rupturas constitucionais e crescente violência jihadista.

Mali foi um dos primeiros casos recentes a evoluir para governo militar duradouro (Golpes em 2020 e 2021), depois seguiram Burkina Faso (2022/2023) e, mais recentemente, o golpe em Níger (2023), sem esquecer que a República da Guiné teve, também, um golpe em 2021. Estas crises partilham traços comuns: fracasso em satisfazer expectativas de segurança e serviços básicos; desgaste das elites civis; exaustão com intervenções externas percebidas como ineficazes ou neo-coloniais; e o aproveitamento de vácuos de poder por grupos armados e forças interessadas externas. Como resultado prático, a perda de legitimidade das instituições civis, militarização da governação e deterioração urgente da situação humanitária e de segurança.

Dois vectores explicam grande parte da dinâmica: (i) a incapacidade do Estado central de garantir segurança e serviços em vastas áreas rurais (territórios “de baixa governação global”), que facilita a expansão de grupos como JNIM (ligado a Al-Qaida) e o IS-Sahel; (ii) a politização e, ou, competição regional e internacional — onde players externos procuram ter ou manter uma cada vez maior influência estratégica (militares, empresas, actores clandestinos) e onde as populações locais por vezes preferem “os novos protectores” face a antigos parceiros.

Ora, estas crises político-militares, além de efeitos locais está a ter efeitos regionais, nomeadamente, recomposição político-localizada e regional como o afastamento destes países da CEDEAO, bem como de alguns países ditos Ocidentais, ainda que, recentemente, os EUA tenham tentado uma aproximação e retoma de diálogo com as Juntas militares, sem que haja desenvolvimento claros.

Saída da CEDEAO e criação de alianças alternativas

As sanções, ameaças e pressões da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) frente ao Golpes de Estado, em geral, e a estes, em particular (em especial, após o golpe em Níger) precipitaram uma reacção dos regimes militares, levando Mali, Burkina Faso e Níger a formalizarem um afastamento de laços regionais tradicionais e estreitaram coordenações bilaterais entre si, culminando na criação de estruturas alternativas de cooperação regional, destacando-se a Alliance des États du Sahel (AES ou Aliança dos Estados do Sahel), como expressão prática de um processo de realinhamento geopolítico regional.

O afastamento – ou, mais correcto, a saída – formal desses Estados da Organização Regional Africana (ORA) que é a CEDEAO (e a adopção de passaportes próprios, com uma retórica de soberania reforçada) representa não só uma ruptura institucional, mas uma cisão sobre como abordar segurança e soberania na sub-região.

A consequência imediata foi a erosão do quadro multilateral ocidentalizado e a criação de corredores político-militares alternativos que, nalguns casos, procuram legitimar as Juntas Militares criadas e instituídas e criar centros de apoio logístico e diplomático fora das arquitecturas tradicionais. O G5-Sahel (criado em 2014 por 5 países africanos do Sahel, o Mali, Mauritânia, Níger, Burkina Faso e Chade), concebido para coordenar luta anti-jihadista e desenvolvimento, ficou fragilizado por estas rupturas e saídas, reduzindo as ferramentas regionais para respostas coordenadas.

Uma das consequências para estas rupturas foi a cada vez maior presença de players paramilitares (mercenários, é o termo correcto) externos, na sua maioria, russas.

O papel das forças militarizadas russas (Wagner, “Africa Corps)

A presença de forças paramilitares ligadas à Rússia, inicialmente agrupadas na Grupo Wagner e, mais tarde, reorganizadas e renomeadas como Africa Corps, teve, ao mesmo tempo, um papel catalisador e controverso. Estas formações ofereceram às Juntas uma opção militar imediata, tais como treino, operações e protecção do regime em troca de contratos ultra e leoninamente vantajosos (logística, extracção de recursos, influência política). Em troca, os Estados com governos militares (ou candidatos a isso) passaram a reduzir a cooperação com forças ocidentais (como, por exemplo, a exigência de retirada de tropas francesas).

O efeito prático foi ambivalente e, em muitos casos, contraproducente: por um lado, mercenários russos ajudaram a conter linhas de ofensiva em certas frentes, em particular, contra o jihadismo, e a manter governos; por outro, acções de grupos vinculados à Rússia foram associadas a abusos, riscos reputacionais e, em alguns palcos (Mali, por exemplo), a falhas militares significativas que descredibilizaram a estratégia, agravando a violência e alimentando ciclos de vingança. Relatos e investigações mostraram confrontos em que mercenários russos sofreram derrotas pesadas, e que a simples presença destas companhias armadas estrangeiras, no geral, não resolveu – nem parece resolver –  problemas de legitimação, inteligência local ou apoio popular , considerados como pré-requisitos para segurança sustentável.

Além disso, quando actores externos (Estados ou empresas de segurança privadas) se envolvem em extrativismo (contratos petrolíferos, minerais e, até, assessorias governamentais), a percepção local de “troca de soberania por ganhos privados” alimenta narrativas de neo-colonialismo e legitima, para muitos, acções de contestação e resistência. Neste sentido, o “factor russo” – o que aqui delimitamos – acaba por ser menos um “remédio”, do que uma variável geopolítica que reconfigura apadrinhamentos locais e complicam eventuais soluções multilaterais. E isto, naturalmente tem impactos significativos.

Impactos políticos e humanos

Ora todo este desenvolvimento – ou a real falta dele – apresenta-nos múltiplas consequências, de que se destacam: deslocamentos massivos, colapso de cadeias de abastecimento, prejuízo da ajuda humanitária (em parte devido a sanções e isolamento), e uma redução do espaço cívico. Em paralelo, a perda de canais de diálogo, em particular, por parte da CEDEAO, de organizações francófonas – consideradas, na grande maioria, como neo-colonizadoras – e de alguns doadores, dificulta qualquer “mediação”. A influência de mercenários estrangeiros degrada a confiança internacional e cria alianças informais com redes locais de poder pró-administrativo (milícias, chefes locais, elites económicas), frequentemente incapazes de produzir governação inclusiva. Dados e monitorização por entidades como o “Armed Conflict Location and Event Data” (ACLED) e “think-tanks” mostra haver um aumento de incidentes violentos e dispersão geográfica do conflito.

Como a CEDEAO parece não exibir capacidade – e será que tem vontade? – para alterar esta situação política no AES, talvez seja altura da União Africana (UA) ter uma palavra – não é mais uma palavra, mas a palavra – a dizer. E o que deverá fazer?

O que África e a União Africana podem (e devem) fazer para evitar novas crises

A resposta africana, ou seja, da UA, com a colaboração das diferentes ORA, tem de ser multi-dimensional (política, institucional, militar e social) e baseada em princípios de soberania, coordenação regional e respeito pelos direitos humanos. Neste sentido dever-se-ia propor medidas práticas e priorizadas, como:

a) Reforçar mecanismos preventivos da UA e revalorizar a diplomacia preventiva: a UA precisa de melhorar e incrementar os seus instrumentos de detecção precoce e de resposta política que não se limitem a sanções “ex post”. Isso implica ampliar a capacidade da Comissão da UA para mediação – e bem previstas e melhor sinalizadas nos seus estatutos –, com equipas rápidas de diálogo político que integrem representantes civis, militares de boa reputação e mediadores regionais. A experiência tem mostrado que soluções exclusivamente militares sem efectivas contra-partidas políticas fracassam;

b) Recondicionar e profissionalizar missões regionais com mandatos claros e “accountability”: forças multinacionais (no caso da UA, as African Standby Forces (ASF) ou Forças de Intervenção Rápida) devem actuar sob mandatos claros, com regras de comprometimento, fiscalização independente e objectivos políticos definidos: proteger civis, apoiar a reconstrução de capacidades do Estado, facilitar negociações locais. Ora, recriar e recuperar a confiança de e com populações exige transparência sobre corrupção e extracção de recursos;

c) Regular e limitar o recurso a empresas militares privadas estrangeiras: a UA (e blocos regionais ou ORA) devem promover normas continentais para limitarem o emprego das mercenárias “Private Military Companies” (PMC, ou Empresas Militares Privadas: ex.: a citada Africa Corps), incluindo regimes de autorização, supervisão e responsabilização, para evitar abusos e dependências que minam a soberania. Como alternativas, o reforço e reformulação e, ou reformulação das forças militares nacionais e cooperação técnica sob supervisão multilateral;

d) Reforçar governação local e serviços básicos (segurança humana): a luta contra o extremismo requer mais policiamento comunitário, justiça local eficaz, projectos de desenvolvimento rural e programas de reintegração. A UA deveria mobilizar finanças (parcerias com o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) e fundos multilaterais) para investir em governação nacional, regional e, ou, local. Este ponto é decisivo, porque segurança sem desenvolvimento é apenas militarização temporária; e, finalmente,

e) Reabilitar canais regionais de diálogo (CEDEAO, G5 Sahel, União Africana) com incentivos positivos: a reintegração progressiva dos Estados que se afastaram, no caso, os da AES, deve combinar garantias de soberania com condições de transição políticas credíveis, em que se destacam, prazos, eleições, garantias de direitos. A punição pura, tipo, sanções, sem oferta política pode, tende, aumentar a radicalização. Devem existir “corredores de reforço de comprometimento”, que incluam incentivos diplomáticos, ajuda técnica e supervisão eleitoral, para devolver trajectórias constitucionais aos regimes políticos e às instituições.

Nesse sentido, o presidente João Lourenço, Presidente em exercício da UA, pode e deve ter um papel interventivo importante.

O papel específico que João Lourenço (Angola) pode exercer

O presidente João Lourenço, com a experiência diplomática e com o protagonismo que a presidência africana lhe confere, tem várias alavancas concretas para poder ajudar a resolver, ou diluir, algumas destas questões:

  1. Mediação neutra e “back-channel” (ou comunicação secundária): Angola pode oferecer Luanda como sede de conversações discretas entre as Juntas militares, a CEDEAO e actores externos (Rússia, França, UA, União Europeia), aproveitando a imagem de Angola como Estado linguisticamente neutro com relações plurais. A neutralidade relativa de Luanda pode facilitar um quadro de compromisso. Não esqueçamos que Angola já teve envolvimento em mediação regional; contudo, decisões recentes sobre priorização da UA mostraram limites operacionais;
  1. Proposta de roteiro de reintegração: João Lourenço pode liderar uma proposta-ponte na UA que combine garantias de não intervenção militar externa (limitando a presença das PMC sem supervisão) com um calendário realista de transição para civis, garantias de segurança para lideranças ameaçadas e mecanismos de verificação internacional. Uma proposta angolana que una interesses africanos poderia ter um forte peso político;
  1. Apoio técnico a segurança e reforma militar: Angola pode oferecer programas de formação e troca de experiências em reformulação e profissionalização das Forças Armadas – temos essa experiência –, apoiados por uma combinação de parceiros africanos e multilaterais; e, ou, tudo depende das vontades políticas em jogo…
  1. Promoção do diálogo económico justo: Angola, e outros países em conjunto, com experiência na governação de recursos hidro-carbonetos, e, ou, mineração, pode propor modelos de contratos de extracção que revertam receitas para população e para programas de segurança humana, reduzindo a atractividade de acordos predatórios que fomentam apoio externo a Juntas.

Estas acções exigem que o presidente João Lourenço disponha de um mandato claro da UA e de garantias de que suas iniciativas serão acompanhadas por recursos financeiros e logísticos reais e efectivos, pois sem estas condições o impacto tende a ser limitado, para não dizer, totalmente nulo.

Em Conclusão (e numa síntese e prioridade de acção)

As crises no Sahel mostram ser um manancial de fragilidade estatal, competição regional e intervenção externa que não resolve os problemas de base. Soluções sustentáveis exigem: (i) recuperação da autoridade legítima através de transições políticas credíveis; (ii) respostas de segurança que priorizem protecção de civis e reconstrução institucional; (iii) regulação e supervisão sobre PMC; (iv) reforço de canais multilaterais africanos de mediação (UA/CEDEAO/G-5) com incentivos políticos e económicos à reintegração.

O presidente João Lourenço e Angola podem ajudar numa moldura de mediação, com oferta técnica e proposta política pan-africana; não escondendo que o sucesso dependerá, sempre, de uma efectiva coordenação com parceiros regionais e da capacidade de oferecer incentivos concretos de reintegração, e que não sejam apenas sanções ou ostracismo. O horizonte passa por recuperar a primazia da diplomacia africana, associada a programas de desenvolvimento local, em vez de confiar unicamente em soluções estritamente militares ou em parcerias externas onde a supervisão africana é nula ou inexistente.

BIBLIOGRAFIA GERAL

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*Pós-Doutorado; Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL (CEI-IUL), Investigador-Sénior Associado do Centro de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social de África (CEDESA/Angola Research Network) e Investigador-Associado do CINAMIL **
** Todos os textos por mim escritos só me responsabilizam a mim e não às entidades a que estou agregado.

Sobre o autor

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