Por:Raul Tati
A Igreja Católica está hoje a viver uma espécie de fogo cruzado por causa das “normas” emanadas no documento “Fiducia Supplicans” pelo Dicastério para Doutrina e Fé, a temível instituição que, no passado, se chamou inicialmente Tribunal de Santa Inquisição até que, em 1821, passou a ser Tribunal do Santo Ofício.
Estamos a falar da instituição católica que é a guardiã da fé, da moral e dos costumes.
Embora tenha sofrido metamorfoses canónicas e históricas, desde a sua criação pelo Papa Gregório IX com a bula “Licet ad Capiendos” (ano 1233), que lhe retiraram o carácter lúgubre da sua função medieval como um tribunal da Igreja Católica destinada a combater as heresias, a apostasia, os cismas, a bruxaria e demais costumes desviantes, o Tribunal do Santo Ofício continua a ser um dos dicastérios do catolicismo romano com um peso inexorável.
Durante cerca de 285 anos, o Tribunal da Inquisição foi uma instituição de terror e desumanidade que marcou negativamente a Igreja. A História registou episódios macabros que levaram à execução de milhares de pessoas. O Discastério para a Doutrina e Fé foi criado pelo Papa Paulo III, em 21 de Junho de 1542, no contexto da contrareforma protestante. A partir de 1555, o Papa Paulo IV ampliou a sua esfera de acção, tornando-a competente para julgar também questões morais de diversa natureza. No contexto do “aggiornamento” eclesial do Concílio Vaticano II, em 1965, o Papa Paulo VI actualizou os métodos apologéticos e alterou o nome para Sagrada Congregação para a Doutrina e Fé. O carácter punitivo da condenação foi substituído pelo carácter positivo da correcção dos erros e recuperação dos prevaricadores. As penas sancionatórias do Direito Eclesiástico passaram a ser medicinais, isto é, com carácter de cura, tendo sido estabelecida a salvação das almas como lei suprema da Igreja (“Salus animarum suprema lex esto”).
É o mais antigo Dicastério (equiparado aos ministérios nos governos civis), senão mesmo o mais poderoso, da cúria romana ao serviço do magistério pontifício. Um dos mais destacados Prefeitos (os Cardeais responsáveis pelos Dicastérios romanos) que por aí passou é nada mais, nada menos que um dos maiores teólogos da ortodoxia católica no século XX, o Cardeal Josef Ratzinger que veio a tornar-se o Papa Bento XVI.
Esse órgão é visto ainda hoje com algum criticismo sobretudo por alguns teólogos que entendem que persistem os procedimentos inquisitórios e persecutórios, embora os Papas S.Paulo VI e S.João Paulo II tenham tomado iniciativas para rejuvenescê-lo sem sucesso, tendo em conta a inércia do seu peso secular. Essa instituição continua a ser o grande carrasco dos teólogos dissonantes (também ditos progressistas) em relação à doutrina oficial do magistério.
Muitos deles foram perseguidos e silenciados ou ostracizados (proibidos de ensinar em escolas católicas).
Bem antes da “Fiducia Suplicans”, esse Dicastério, ora liderado pelo Cardeal jesuita espanhol Luis Franco Ladaria Ferrer, também
Professor de Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, havia tornado público em 15 Março de 2021 a posição da Igreja Católica sobre a polémica questão das uniões homossexuais/homoafectivas através de um “Responsum” datado de 22 de Fevereiro de 2021. Nesse documento vem reiterada a doutrina católica sobre a matéria em questão, não reconhecendo essas relações ou uniões. “Ao quesito proposto: a Igreja dispõe do poder de abençoar as uniões de pessoas do mesmo sexo? Responde-se: negativamente”. Diz o texto assinado pelo Cardeal Prefeito. Aqui rejeita-se liminarmente as uniões homossexuais/homoafectivas. Essa posição nada traz de novo. Foi apenas o reiterar daquilo que já vem plasmado no Catecismo da Igreja
Católica segundo o qual a homossexualidade é referida como “actos de grave depravação” e “intrinsecamente desordenados”; são “contrários à lei natural. Fecham o acto sexual ao dom da vida. Não procedem de genuína complementaridade afectiva e sexual” (cf nn.2357-2359).
Entretanto, o Cardeal Jean Claude Hollerich, Arcebispo de Luxemburgo, questionou essa linguagem “extremista” num documento tão importante. O Cardeal defende que “é preciso acolher todas as pessoas e fazê-las sentir o amor de Deus (…). Os homossexuais devem sentir-se bem-vindos em nossa casa.
Caso contrário, eles vão embora. Se dissermos que tudo o que eles fazem é intrinsecamente ruim, é como dizer que a sua vida não tem valor.” No mesmo sentido, a Associação de Pais “Reconnaissance” apelou aos Bispos católicos da França a consideração da dignidade dos seus filhos pela doutrina da Igreja Católica, mostrando em particular sua oposição ao parágrafo do Catecismo da Igreja Católica que descreve os actos homossexuais como “intrinsecamente desordenados”: “Pais e mães católicos de filhos e filhas homossexuais, conclamamos os bispos da França para que a doutrina da Igreja leve em consideração a dignidade de nossos filhos.
Testemunhamos a aceitação da homossexualidade nas igrejas nacionais que são nossas famílias e desejamos um diálogo autêntico com nossos pastores da Igreja.
É extremamente importante para nós reduzir o sofrimento causado pela ignorância e incompreensão. Queremos enriquecer a Igreja reconhecendo nela um lugar pleno e completo para os homossexuais.”
O Cardeal Hollerich entende que essa formulação devia ser excluída do Catecismo Católico. O próprio Papa Francisco manifestou alguma tendência nesse sentido, mesmo declarando que a homossexualidade era pecado, mas não um crime, ao acolher um pedido feito em 2021 pelos Bispos da França para uma reformulação desse parágrafo.
Não estou certo que o Papa tenha eventualmente solicitado tal reformulação. De uma forma geral, o Papa Francisco, embora conotado com correntes progressivistas pelos sectores mais radicais do hierarquia católica, na perspectiva doutrinal, não alterou até aqui uma única vírgula do Catecismo da Igreja Católica. Segue-o e aplica-o pastoralmente.
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