Há cerca de ano e meio que pela Europa perpassa um conflito militar – e político – cujo impactos ainda estão, com total afirmação, longe de serem devidamente avaliados.
Recordemos que em Fevereiro de 2022 a Federação Russa invadiu a Ucrânia no que esperava ser uma rápida guerra relâmpago «blitzkrieg» procurando o líder russo, Putin, trazer, e fazer de, a Ucrânia o primeiro caso efectivo de um país independente para o seu «espaço vital» (ou Lebensraum) recuperando e revitalizando o antigo espaço territorial da União Soviética
De notar que Putin já tinha começado esta “recuperação”, mas com “territórios rebeldes” de alguns países, incluindo a Ucrânia (casos da Crimeia e Donetsk e Lughansk – o Donbass –, em 2014), na Chechénia (de 1994 a 2000), na Geórgia (Ossétia do Sul e Abcázia, em 2008) ou no persistente conflito entre o Azerbaijão e a Arménia (este, habitual aliado mais próximo de Moscovo, por ser o único, na região, não islâmico) ou no Cazaquistão, em Janeiro de 2022. A intervenção no Cazaquistão, ou melhor, o envio de forças de “manutenção de paz”, tal como aconteceu nos referidos conflitos anteriores, foi o princípio do quePutin estimou para a Ucrânia. O líder russo, quando interveio no espaço cazaque afirmou que, cita-se, «não ia tolerar “revoluções coloridas” no espaço da ex-União Soviética». Esta tem sido uma forma que Putin usa para questionar aproximações ao Ocidente ou pedidos de adesão à OTAN/NATO.
Ora, o ataque e invasão à Ucrânia além de não ter corrido como esperava, conseguiu dois factos importantes – um dos quais , nos diz mais respeito – aliar a Europa e o Ocidente, num todo, em torno da defesa da Ucrânia e nas subsequentes sanções à Rússia; e, o que deveria não ter acontecido se tivéssemos líderes com carisma e visão política, dividir África.
Como já referi a invasão da Ucrânia levou o Ocidente a solicitar na Assembleia-geral das Nações Unidas, sanções contra a Rússia e alguns líderes e oligarcas russos. Pela primeira vez, a Rússia sentiu-se acossada internacionalmente, dado que uma larga maioria dos países aprovaram essas sanções. Só que, e como em outros factos, uma parte substancial dos países Africanos ou absteve-se ou votou contra (caso da Eritreia) e uma outra, não tão pequena, votou a favor (situação que se manteve em votações que ocorreram posteriormente).
Naturalmente que os países e os seus líderes são livres de pensarem em como votar, face às suas relações privilegiadas. No caso da África do Sul, ainda que com algumas reservas – nunca refutou, claramente, a invasão – a sua abstenção é, talvez, compreensível pelo facto de pertencer aos BRICS – ao contrário do Brasil (Zarur, Oliveira & Morais, 202). Todavia, nos restantes países, essa abstenção é incompreensível. Não pela abstenção em si, mas na justificação.
A maioria dos países africanos que se abstiveram – nós, incluídos – apresentaram como justificação serem neutrais num problema que consideram pertencer a outro continente e não a África.
Repito, e para que fique claro, todos os Estados líderes nacionais são livres de tomarem as medidas diplomáticas que lhes sejam mais interessantes e favoráveis.
Recordemos duas antigas célebres frases da diplomacia internacional. Henry John Temple, Lorde Palmerston, antigo primeiro-ministro britânico, entre 1830 e 1865, dizia que a «Inglaterra não tem amigos eternos nem inimigos perpétuos; a Inglaterra tem é eternos e perpétuos interesses»; por sua vez, John Foster Dulles, antigo Secretário de Estado – 52º Secretário de Estado norte-americano da administração Dwight D. Eisenhower –, afirmava que os «países não têm amigos, têm interesses». Desta dupla conjugação diplomática se “criou” aquela que hoje é muito usada nos corredores diplomáticos «os Estados não têm amigos nem inimigos, têm interesses a defender». E foi esta máxima que os Estados e líderes africanos se esqueceram na Assembleia-geral das Nações Unidas: defender os interesses nacionais.
Na realidade, a maioria das abstenções passaram pela desculpa mais esfarrapada que poderíamos ter apresentado e que, aceitem ou não, nos colocou, nós Africanos, num patamar pouco agradável. É certo que alguns líderes procuram fazer um “volta atrás” nas suas justificações. Porem, a mensagem que transmitem continua subjacente a anterior razão: e st foi que a abstenção era um sinónimo de… neutralidade.
Se os nossos líderes, em vez de procurarem passear por diferentes países Ocidentais – que alguns tão verberam, mas que não deixam de lá colocar fundos financeiros e comprarem imobiliários (terrenos e prédios) e mobiliários – por diferentes razões (colocação dos tais fundos financeiros, passeios, problemas de saúde – não acreditam nos seus e nossos serviços clínicos) procurassem aprofundar os seus conhecimentos diplomáticos talvez não fizessem certas afirmações que só nos desprestigia. De facto, há uma diferença substancial entre abstenção e neutralidade. Nem precisariam de ira compêndios das Ciências Políticas e Diplomáticas; bastariam consultar os dicionários para perceberem da diferença.
Em diplomacia ou Relações Internacionais, a “abstenção” é normalmente interpretada como «não querer responder» ou «privar de intervir», por sua vez, a “neutralidade”, e de acordo com o Direito Internacional Público (DIPu), «é a política adoptada por um Estado que evita uma guerra que afecte dois ou mais Estados, abstendo-se de participar dela, seja diretamente participando das hostilidades, ou indiretamente auxiliando um ou mais Estados, o outro dos beligerantes»; o dicionário afirma que a “abstenção” é «o efeito de renúncia, privação ou não intervenção» e a neutralidade é «a qualidade, estado ou situação de uma nação que não toma parte alguma em hostilidades entre outras nações beligerantes». Ou seja, o dicionário segue, ainda que a norma costumeira do DIPu.
Resumido, os nossos líderes só pensaram em dois únicos factores: a Rússia sucessora da antiga União Soviética (US) que Putin quer fazer renascer – Putin, apesar de afirmar que não deseja refazer a US, não deixa de sublinhar que o fim da US foi a maior catástrofe geopolítica –, continua a ser vista – tal como, agora, a China, – por muitos nossos líderes como o país apoiante das revoluções e da libertação económica das amarras das potências económicas ocidentais; os recentes casos do Mali, Burkina Faso, Guiné, Chade e República Centro-Africana (RCA) são os mais paradigmáticos e, sublinhe-se e nunca se esqueça, é onde está a “armada” privada de Putin que sustenta alguns “revoltosos”: o grupo Wagner (que também está na Líbia e esteve, ainda que por pouco tempo, em Cabo Delgado, Moçambique); o mesmo grupo que faz segurança em certas actividades económicas e mineiras, mas cuja principal função é sorver parte dessa actividade para Sampetersburgo ou Moscovo: a exploração do ouro e diamantes na RCA isso o mostram (assim o queiram vez nas imagens qe o próprio grupo coloca na Internet)
Para muitos líderes ainda vale a máxima «o inimigo do meu inimigo, meu amigo é!», não pode, não deve, nunca, ser adoptado pelos dirigentes políticos, sob pena dos interesses dos Estados serem postos em causa. E a África do Sul, para fazer face a uma constante subida de desagrado social, começa a ir pelo mesmo caminho com as consequências que disso pode advir, em que o presidente Ramaphosa quer aliar Deus e Diabo, e nas RI isso é só possível – e muitas vezes nem isso – em filmes e séries televisivas, ou seja, estar bem com o Ocidente e manter excelentes relações com Moscovo, nunca, repito ter criticado a invasão da Ucrânia. Este facto, levou que alguns congressistas norte-americanos tenham pedido – no momento que escrevo estas linhas – à administração Biden que mude o país organizador do Fórum AGOA 2023, uma ou mesmo a principal cimeira económica entre os EUA e o Continente Africano sobre benefícios fiscais; isto é um dos indiciadores desse mal-estar com o Ocidente aliado à insistência de receber Putin, alvo de um mandado e captura internacional emitido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), na África do Sul pela cimeira dos BRICS – ainda que recentemente, e após sérios avisos da MIREX sul-africana, Naledi Pandor, e da Justiça sul-africana que acordos e tratados são para serem cumpridos, principalmente os com o TPI de que a África dos Sul é um dos signatários, Ramaphosa pondere em mudar a cimeira para Moçambique ou outro país que não tenha acordos de extradição com o TPI.
Temos, os Estados Africanos, de começar a colocar os nossos interesses, principalmente financeiros – os investidores não se interessam por países onde as políticas são errantes, onde imperam corrupção e excesso de burocracia, moeda pouco credível e onde os capitais não são livremente transaccionáveis –, económicos e sociais, acima dos interesses políticos de alguns quantos líderes que colocam a sua imagem num pedestal qu mnão interessa aos Estados.
África tem de acordar e de vez e não deixar fugir oportunidades como as que ocorrem com o conflito europeu. Por exemplo, aumentar a produção e exportação cerealífera- ainda continuamos à espera que sejam os ucranianos, via ONU, suprir essa necessidade em alguns dos nosso países –, produzir e exportar minérios considerados essenciais para o Ocidente, em particular os usados nas novas tecnologias, etc. Estamos a ver uma oportunidade perdida, numa grande policrise global (Dias, 2’22)!
Referências bibliográficas:
- Dias, Alexandra Magnólia (2022). Guerra Ucrânia -Rússia: implicações para África num mundo dividido e atravessar uma policrise global; in: Público, 5 de abril de 2022.
- Zarur, Camila, Eliane Oliveira & Gabriel Morais (2022). Assembleia Geral da ONU condena Rússia por 141 votos e só cinco contra; Brasil apoia condenação; in: O Globo (online), 02/03/2022 – 14:14 / Atualizado em 09/03/2022 – 16:06; URL: https://oglobo.globo.com/mundo/assembleia-geral-da-onu-condena-russia-por-141-votos-so-cinco-contra-brasil-apoia-condenacao-1-25415843
- As guerras da era Putin: da Chechénia à Ucrânia; in: SIC Notícias online, 01.03.2022 23:19; URL: https://sicnoticias.pt/especiais/guerra-russia-ucrania/2022-03-01-as-guerras-da-era-putin-da-chechenia-a-ucrania
- Para Putin, fim da URSS foi catástrofe geopolítica; in BBC Brasil, 25 de abril, 2005 – 12h01 GMT; URL: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/story/2005/04/050425_putinro.
- Putin lamenta colapso da União Soviética; in: Folha de São Paulo, 26 de abril de 2005; URL: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2604200511.htm.
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