A emergência/inevitabilidade do “local”, nas dimensões do planeamento e implementação das políticas públicas, tem conhecido alguns “altos” e significativos “baixos”, nas últimas duas décadas, em Angola.
Por: Édio Martins/Fotos: Arquivo F&N
O desenvolvimento legislativo e administrativo, registou um marco com a aprovação do Decreto-lei nº 02/07 de 3 de Janeiro, que pretendia proporcionar em Angola um contexto de desenvolvimento favorável à implementação do processo de descentralização administrativa, pretendendo complementar o reforço das atribuições dadas à Administração Local do Estado através da desconcentração administrativa.
Este esforço concretizou-se, entre outras medidas, com a aprovação do Fundo de Emergência Municipal (FEM) e do Programa de Melhoria de Gestão Municipal (PMGM) e consequente criação do Plano de Intervenção Municipal (PIM), correspondendo este ao elemento central da estratégia anual implementada a nível nacional para os Municípios. O PIM é complementado por outros instrumentos de planeamento e contém as acções imediatas e a prazo que visem a manutenção das estruturas públicas, a promoção e apoio de iniciativas de integração social e de valorização municipal e a prestação de serviços públicos.
O poder local tem neste plano o instrumento de visão onde realiza o diagnóstico da situação de referência, sintetiza as perspectivas de desenvolvimento para a respectiva área de jurisdição e procede à definição dos objectivos, metas orçamentais e projectos a implementar no ano de vigência do plano.
A reflexão que aqui procuramos fazer surge como um contributo para a formulação de um “quadro” de inteligibilidade sobre o Desenvolvimento Local.
Assim,
O conceito Desenvolvimento Local (numa revisão de autores) surgiu apenas na década de 1980, período em que foram equacionados novos princípios teóricos, conceptuais e metodológicos principalmente, vocacionados para formas de intervenção social inovadoras e definidas como alternativas.
Esta nova perspectiva surge ligada ao cepticismo que as abordagens teóricas economicistas do desenvolvimento vinham, ao longo do tempo, fazendo emergir e que se justificavam pela fragilidade dos resultados no que respeita à mudança, encarada a nível global, face a expectativas excessivamente elevadas.
Foram identificadas estratégias tendentes à minimização dos problemas endógenos, com base em metodologias participativas e recorrendo ao envolvimento dos grupos comunitários. A análise do desenvolvimento a partir da dimensão da localidade passou a evidenciar, de forma clara e inequívoca, uma preocupação de âmbito geográfico traduzida na identificação territorial dos problemas, mas também na procura local das soluções.
Apesar de representarem um importante contributo para a explicitação do processo de mudança, as abordagens alternativas centradas no nível local ultrapassam a leitura analítica meramente teórica e conceptual. Esta perspectiva apresenta uma linha estratégica inovadora para a época, vocacionada para a intervenção, procurando identificar novas propostas, adaptadas às realidades e centradas na resolução dos problemas concretos e sentidos pelas populações locais, defendendo a adopção de medidas sectoriais fundamentadas na definição de prioridades.
Do ponto de vista estratégico, o protagonismo na condução do processo de mudança foi objecto de revisões, passando a estar fundamentado na importância atribuída às necessidades sentidas pela população, na (re)valorização das capacidades reconhecidas às comunidades locais e às potencialidades endógenas de âmbito regional e local.
Desta forma, as populações passam a ser perspectivadas como protagonistas ou actores interventivos, ou seja, mais do que simples benei ciários das mudanças introduzidas a partir de entidades externas. Esta ideia foi reforçada pelo conceito de empowerment introduzido por John Friedmann, no que respeita ao reforço de competências das populações locais. Neste sentido, são equacionados e valorizados os ideais de participação e de protagonismo activo da população, seguindo critérios éticos de justiça, de inclusividade e de equidade, tendo por objectivo a sustentabilidade e a dimensão temporal do longo prazo.
As análises anteriores, tendencialmente economicistas, tendiam para uma sobrevalorização do esquema económico assente na relação entre o rendimento, a capacidade de investir, a produtividade, a redução dos custos, a repartição dos riscos e o lucro. As restantes dimensões do desenvolvimento, nomeadamente a social, a cultural, a política e a ambiental, eram vulgarmente secundarizadas e concebidas como o resultado de processos de difusão dos benefícios a partir do incremento e da dinamização da economia. Este modelo de desenvolvimento foi prevalecente até ao final dos anos 70, não equacionando com profundidade os limites do Ambiente e os riscos de degradação impostos pelas estratégias favoráveis ao crescimento económico exacerbado, bem como encobriam as ameaças e os desequilíbrios sociais. Até aqui, as referências territoriais do desenvolvimento não iam além da concepção regional e era visto como o resultado pretendido do planeamento económico, mais ou menos centralizado, mas sempre descendente, ao nível subnacional.
O processo de desenvolvimento centrado na localidade passou a ser reflectido e discutido a partir de uma concepção multidimensional e integrada reunindo, de forma articulada, as diferentes dimensões da vida social. Trata-se, assim, de uma abordagem complexa, que promove uma análise interdisciplinar, desde a identificação dos problemas até à intervenção, passando pela captação e mobilização dos recursos considerados necessários.
Do ponto de vista da ampla discussão sobre o tema, consiste na perspectiva infranacional, territorialista, também denominada de from below, pressupondo uma maior proximidade da população em relação às carências, aos problemas e aos interesses locais, privilegiando o bem-estar das comunidades, associando-o ao crescimento económico.
O Desenvolvimento Local passou a estar directa e intrinsecamente dependente de três princípios básicos e fundamentais, já que é considerado a partir de uma base endógena mesmo que, face às necessidades contextuais e estruturais, o recurso ao apoio externo seja inevitável. Os três princípios são:
- a justiça equitativa, critério que permite garantir a todos a assumpção dos padrões mínimos no que respeita às condições de vida da população, perspectivando-a como uma prioridade do processo de desenvolvimento;
- a sustentabilidade, que assegura a utilização racional e local dos recursos naturais por parte da população local, assegurando tanto o bem-estar no presente como no futuro, por não o pôr em causa;
- a inclusividade, que viabiliza a concretização do reconhecimento de todos os indivíduos que pertencem a um grupo enquanto potenciais intervenientes activos e protagonistas no processo de mudança num período histórico considerado.
De acordo com estes três princípios, as populações locais adquirem importância enquanto actores com papéis e funções próprias, ao lhes ser reconhecido um protagonismo jamais pensado até então, passando os grupos comunitários, no seio dos quais se desenrola a vida, a ser considerados como o espaço de excelência e de referência para a promoção da mudança. O desenvolvimento passa a requerer uma disponibilidade efectiva, de forma particular, por parte de cada um e, de forma geral, por parte de toda a comunidade, já que depende do pleno exercício da cidadania, implicando participação e envolvimento.
Neste sentido, adquire também uma vertente comunitária, por apelar para um trabalho a desenvolver em conjunto, em parceria e com integração das diferentes componentes que interferem a nível local com a vida da comunidade, fundamentando-se nos princípios metodológicos da participação.
Apesar de não esvaziarem o conceito da conotação económica largamente defendida em períodos anteriores, as novas perspectivas da mudança, incluindo a centrada no nível territorial local, relativizam a importância da centralidade económico-financeira, particularmente quando a análise recai em países não industrializados e onde as fragilidades se evidenciam. Nas propostas locais, o desenvolvimento não se opõe ao crescimento, sendo inclusivamente considerado como um factor necessário para a prossecução dos princípios da justiça equitativa, da sustentabilidade e da inclusividade referidos anteriormente.
As novas concepções territoriais do desenvolvimento são ainda complementadas pela reformulação conceptual das funções convencionalmente atribuídas ao Estado, entendido de forma tradicional como regulador e interventor a nível económico e assistencialista do ponto de vista social. As alterações introduzidas tenderam à repartição do protagonismo na prossecução do processo de mudança, em resultado do surgimento de novos actores socioeconómicos, centrados na esfera de acção da Sociedade-Providência, que viabilizam o estabelecimento de parcerias e a mobilização de interesses individuais e colectivos. Esta nova forma de actuação sugere o envolvimento das populações com valorização das capacidades endógenas e das potencialidades locais. De forma consequente, as linhas orientadoras da mudança e os princípios estratégicos a seguir para a continuidade do processo passaram a fundamentar-se no ideal do Ser Humano, nas comunidades, nas noções de parceria, de participação, de envolvimento e de integração.
No que respeita à conceptualização do Desenvolvimento Local, alguns autores apontam dez elementos principais que, no conjunto, se fundamentam em identidades construídas, com o tempo reconstruídas, promotoras de solidariedades comunitárias próprias.
Estes princípios definem-no como um processo:
- de mudança, ou seja, de transformação, que não é compatível com a manutenção do status quo no sentido mais enraizado do termo por resultar num fechamento evidenciando incapacidade para aceitar a evolução. A mudança é operada enquanto processo, o que significa continuidade;
- centrado numa comunidade territorial de pequena dimensão, já que o ponto de partida para a mudança é coincidente com a unidade territorial micro de âmbito comunitário;
- que procura responder a necessidades não satisfeitas, localmente sentidas pelas comunidades e, por elas, consideradas fundamentais;
- que se fundamenta na mobilização das capacidades locais, reconhecendo e respeitando as potencialidades humanas e naturais;
- -que implica uma dinâmica própria e a prossecução de uma metodologia participativa radicada no envolvimento efectivo dos membros da comunidade local;
- que, sempre que necessário, recorre às capacidades exógenas, consideradas como catalizadoras e estimuladoras dos recursos locais potenciais;
- que assume uma perspectiva integrada tanto dos problemas como das soluções, através da qual os problemas, além de serem identificados de forma isolada, são considerados de forma interligada;
- que está associado ao princípio do trabalho em parceria, identificando-se acções conjuntas, negociando-se e ultrapassando-se conflitos, recorrendo ao aprofundamento de redes de solidariedade local promotoras, a longo prazo, do reforço identitário e da valorização endógena;
- que promove efeitos de difusão, resultando no exercício de impactos para toda a comunidade;
- que se caracteriza pela diversidade de pontos de partida, de metodologias, de acções e de resultados.
Seguindo este paradigma, o Desenvolvimento Local pode ser definido como o processo de mudança, centrado numa comunidade territorial, que parte da constatação de necessidades não satisfeitas, às quais se procura responder prioritariamente a partir das capacidades locais, o que pressupõe uma lógica e uma pedagogia de participação, em articulação necessária e fertilizadora com recursos exógenos, numa perspectiva integrada e integradora, o que implica uma dinâmica de trabalho em parceria, com um impacto tendencial em toda a comunidade e com uma grande diversidade de caminhos, protagonismos e soluções.
De acordo com esta perspectiva, pode considerar-se que o desenvolvimento local consiste num processo que interliga a reflexão teórica e metodológica com a praxis, ultrapassando as concepções largamente discutidas ao longo do tempo e chegando às realidades concretas, às especificidades dos lugares, às vidas das pessoas, aos problemas e à vontade de os resolver, trabalhando em conjunto. Assim, o desenvolvimento local não pode ser concebido de forma simples como um fim em si mesmo. Trata-se de um caminho que é necessário percorrer de forma planeada, estruturando estrategicamente as diferentes acções em função de objectivos concretos e levando em consideração as expectativas e as motivações das pessoas, antecipando obstáculos e encontrando meios para os ultrapassar, passo a passo.
Enquadradas pelas abordagens do desenvolvimento local, as metodologias participativas adquiriram uma importância crescente, visto que a população, com a sua característica de inclusividade, deixou de ser considerada como simples beneficiária dos efeitos do processo de mudança. As pessoas passaram, antes de mais, a ser perspectivadas como agentes prioritários e promotores da mudança em todas as esferas da vida: política; económica; cultural; sócio-ambiental. O processo passou a estar fundamentado na capacidade de implicar directamente, de forma motivada e responsável, os diferentes actores sociais, incluindo os grupos minoritários, em todas as actividades prosseguidas.
A metodologia participativa é efectivada a dois níveis principais, susceptíveis de análise parcial ou conjugada:
- o nível macro, em que um indivíduo participa nos principais momentos da vida nacional, recorrendo ao exercício de um direito que lhe é formalmente reconhecido, coincidindo, na maioria das vezes, com os momentos eleitorais característicos dos sistemas políticos democráticos;
- o nível micro, em que os indivíduos participam a nível local, envolvendo-se directamente nas acções promovidas, colaborando com associações locais, formais ou informais, contribuindo para a efectivação da mudança.
A estratégia participativa, que tão bem se adapta à concretização do desenvolvimento local, implica a identificação, o reconhecimento e o reforço de identidades comunitárias que facilitam a efectivação dos três critérios já referidos: a inclusividade, a justiça equitativa e a prossecução da sustentabilidade.
Já que o desenvolvimento local se fundamenta na concepção micro, infra e from below, é suposto que os membros das comunidades se sintam envolvidos e parte integrante de todo o processo, ou seja, que tenham sentimento de pertença relativamente ao grupo, procurando reforçá-lo. Desta forma, os objectivos são partilhados e identificados como comuns, porque assentes no trabalho colectivo desenvolvido tendo em conta a prossecução de fins previamente definidos, o que permite reforçar o sentido da autonomia. Esta abordagem implica, acima de tudo, o reforço da autodeterminação comunitária na tomada de decisões promovendo um self-reliance (autoconfiança)a vários níveis da vida social, o que significa uma crescente liberdade local e endógena em que o ponto de partida é precisamente a localidade.
Neste contexto, a participação activa, individual ou em grupo, envolvida e responsável, é considerada, mais do que um simples direito, um dever porque a prossecução da mudança é também entendida como uma atribuição de todos, pelo que não há lugar para a desresponsabilização individual. Se é consensual que, de uma forma geral, o desenvolvimento se traduz na melhoria quantitativa e qualitativa das condições de vida e de trabalho das populações, incluindo a redução da situação de pobreza, a minimização dos efeitos da desintegração social e da marginalidade, mas também da degradação ambiental, a perspectiva local coincide com uma abordagem relativizada dos problemas, mas consciente das situações e favorável à introdução de alterações que viabilizem essa melhoria. É assim uma abordagem catalizadora de capacidades, centrando-se nas pessoas.
Um dos principais pressupostos da abordagem do desenvolvimento centrado na população, que se fundamenta em metodologias participativas e que tem por objectivo a prossecução da mudança a nível local, radica na ideia de que cabe aos grupos comunitários a mobilização empenhada e efectiva de vontades e de capacidades estimuladoras da iniciativa, favorecendo a implementação de estratégias integradas e inovadoras de desenvolvimento.
Esta é uma abordagem que reúne múltiplas vantagens tornando-a apelativa, mas à qual também se podem identificar alguns limites. As principais vantagens atribuídas ao desenvolvimento participativo e de base local centram-se num conjunto de factores, entre os quais se pode destacar:
- a proximidade e o imediatismo em relação aos problemas sentidos, que permite uma rápida e directa identificação das necessidades, assim como a selecção eficaz dos meios considerados mais adequados para a sua resolução;
- o entendimento de que a metodologia de intervenção para a resolução dos problemas apresenta complexidade, visto envolver de forma interrelacionada diferentes dimensões;
- a possibilidade de mobilizar capacidades humanas locais diversas e know how, bem como de valorizar as potencialidades naturais e culturais;
- o estabelecimento e o reforço de parcerias entre actores com capacidade de intervenção territorial diferenciada, com eventual estruturação em redes promotoras de mudanças sustentáveis a longo prazo.
Contudo, a análise dos processos de desenvolvimento local alerta para alguns limites que se impõem, ou dificuldades que podem surgir e que requerem ser contornadas de forma eficaz, a saber:
- a limitada disponibilidade financeira que dificulta a operacionalização sustentável das mudanças, ou seja, podendo pôr em causa a continuidade das acções planeadas;
- o reduzido know how técnico associado à inexistência de inovação tecnológica adequada;
- a dificuldade em aceitar a temporalidade dos efeitos no longo prazo face à urgência das necessidades localmente sentidas e da vontade de obter benefícios no imediato, ou pelo menos a curto prazo;
- a identificação de parceiros credíveis dispostos a trabalhar em associação e em parcerias reais fundamentadas em princípios como a responsabilidade partilhada.
De acordo com as pistas enunciadas ao longo desta reflexão, pode considerar-se que através dos contributos apresentados pelas abordagens alternativas, o processo de desenvolvimento deixa de ser considerado em função de uma única dimensão para passar a ser equacionado com base numa perspectiva multidimensional, global e integrada, pressupondo a existência de factores condicionantes internos (passado histórico, condições geográficas e climatéricas, estrutura social e sistema político dominante) e externos (condições regionais ou continentais e relações internacionais estabelecidas) .
Deixe um comentário